Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos


SEO PEREIRA E DONA QUINA - Parte I

                                           

 

         Cabo de Areias, cidade portuária.  Porta de vaivém da matéria-prima exportada para outros mundos – que a  revendem, transformada em bens de consumo.  Liga-se à cidade vizinha, Neves, capital do estado, por uma poenta estrada de barro – pista de corrida dos caminhões de carga, cujos ventos aparentes redemoinham as areias finas e escuras do estreito acostamento.

A rodovia, os trilhos da ferrovia e o rio Sanhauá, alinham-se ao mar e caminham em direção ao porto, donde se vê o pôr do sol.  Olhando por perto e pro porto, uma igreja – branca, de torres afuniladas –, que tem ao seu lado uma praça, por onde tudo passa.

Passam os caminhões de carga, as feiras e os feirantes.

Passam embarcadiços de braços dados com as amantes.

Passam tripulantes, estudantes, comerciantes e operários de macacão – das oficinas do porto ou da ferrovia –, com os estivadores, doqueiros, conferentes, serralheiros, marceneiros  e suas reivindicações.

Passam  os biscateiros e muitas desilusões.

Passam  as donas de casa, desarrumadas e  inquietas ou cuidadosas e apreensivas.

Passam os pescadores  descamisados, despreocupados e...  ficam  os desocupados.

De dia, bom lugar pra saber o que se passa, quais são as novas... e de se saudar.  De noite, bom para as fofocas... e de se namorar.

 

         Não passa o farol, que aponta a cidade pelo caminho do mar.

Não passa o forte, que enlaça a cidade num abraço secular.

Fica a beleza dos casebres de pau a pique, reforçados com o barro raspado da estrada e pedras do mar, recobertos com palhas arriadas – ressecadas e reviradas – do coqueiral.

É estonteante essa geografia, mas a beleza maior do vilarejo é o exercício ingênuo da solidariedade como hábito social.

         
Lá, quase tudo é compartilhado.  Troca-se a lenha, destinada ao abastecimento das locomotivas, tipo maria-fumaça, por grãos derramados (a propósito) das sacas rompidas nas rampas do cais.   Troca-se peixe de primeira por mangas e bananas das sobras da feira.  Troca-se passarinho, engaiolado, por calças jeans ou brinquedos sofisticados e, às vezes, com volta em dinheiro estrangeiro.   Troca-se de amor e de amizade.  Troca-se de mulher:  a recatada, de casa, pela devassa, do cabaré...

 

         E, nas conversas da praça, tem sempre o  “Zefalante”, que sabe da vida de todo mundo, diz que sabe de tudo, mas não vai à escola - inda se diz estudante.  Tem também Seo Pereira, biscateiro, muito bom de memória, que a tudo rima, mas nada revela de sua história.

 

         Zefalante diz que dona Quina é puta de Seo Pereira, mas dela, recém-chegada no vilarejo, ninguém sabe nada e, dele, fala-se que, até embriagado, tem medo de abrir a boca pra resmungar seus segredos.  O que se sabe, mesmo, é que Seo Pereira a tudo poetiza e sempre dá um jeito quando a rima não dá.

Trabalha quando quer, bebe o quanto pode, profere obscenidades para escândalo da vizinhança e, por conta de suas rimas, ainda leva vida de rei – rei negro, rei do zabumba, rei da embolada no coco de roda –, e, como todo rei, é amado.  Traz, no íntimo, uma repudiante perturbação moral, um sentimento de culpa por algum erro outrora cometido...  Quiçá, uma frustração pela perda do grande amor de sua vida, arrebatado por um outro rei, mais forte e mais astuto, daquele que, pela espada, é senhor da vida dos seus súditos.

 

         É um cachaceiro!...– detona Zefalante.

 

         Não!  – retruca Fred, que já ouviu, num coco de roda,  umas emboladas  de  Seo Pereira. É um poeta que não bebe por prazer, mas para esquecer não sei o quê...  Embriaga-se pra descarregar suas mágoas, mas não o faz e, pelo que entendo, nunca vai fazer.  Somente embriagado é que se sente feliz.
 

E rememora alguns versos que Seo Pereira cantou entre uma batida de limão ou de maracujá e a do zabumba, no compasso do maracá:
        
...trago magoado essa praga: *

minha vid´afundou no mar *           

no entornar da jangada.*


(*): mineiro-pau, mineiro, oi!    (Sol-Si-Si-Sol--Sol-Si-Ré)

        
     
Mais parece a linguagem conotativa das professoras em dia de festa na escola.

 

...se o mar arrebatou *

o meu amor para amar,*

vou ciumar do rei do mar...*


(*): mineiro-pau, mineiro, oi!    (Sol-Si-Si-Sol--Sol-Si-Ré)
 

      Às vezes, tudo se repete, ou se corrompe. E os que dançam não estão nem aí para as lamúrias do embolador. Talvez seja, Fred,  o único a captar fragmentos poéticos de uma mensagem indignada e desaforada dirigida ao mar.

Quanto ao refrão, continua, altas horas, sem malícia.  Canção de ninar da polícia:  mineiro-pau / mineiro, oi!

        

...e o prendeu noutro lugar.*
G
eme quem por lá veleja*          
Quem 
dera algemar o mar!...*

(*): mineiro-pau, mineiro, oi!   (Sol-Si-Si-Sol--Sol-Si-Ré)  
      
     
Por fim, o embolador percebe que está prestes a revelar o mais importante episódio de sua história.  Num repente, confunde e assusta a todos que participam da festa com um rosário de palavrões.  Palavras esquisitas, em desuso naquele ambiente.  Consideradas de baixíssimo calão pelos anciãos:

        

Estão com a gota serena, bando de condenados?!...

        
Vão pros quintos dos infernos, seus amaldiçoados...”


Que a desgraça da gangrena os pegue!


Raio que os parta e o diabo que os carregue!...


                                     ***
                                                                                     

<   A seguir, parte II   >
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Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 07/03/2011
Alterado em 26/07/2011


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