Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

SEO PEREIRA E DONA QUINA – Parte V (final)
 
Dona Quina se veste de preto. Denúncia de luto e solidão. Visita a cova arenosa do saudoso poeta e companheiro, todos os dias. Traça em torno dela um belo jardim, ornado de rosas, lírios, jasmins... 
Um desconhecido, por deboche, planta também um pé de cana, bem no lugar da cruz.  E ela nem se importa!... Entrega tudo a Jesus. Com humildade e muita saudade, o cultiva, depois colhe.  Assim, em goles de doçura, encontra um sabor para embriagar-se de amor.


Apesar da carapinha quase branca, ela parece remoçar.  O tempo lhe inverte o semblante, esconde-lhe as rugas, devolve-lhe a idade jovial do próprio espírito.  Modestamente, supera, esquece e perdoa as cicatrizes que o amante lhe cravara na alma.  Perdoa e tenta esquecer todas as calúnias de que foi vítima no vilarejo.  Seo Pereira arrastou-as com a rede branca da paz.  Quando instada a falar sobre o amor que se foi, fala sobre o verdadeiro amor que nunca se vai.   E parece até ter aprendido a poetar, inspirada em seu poeta do além-mar:

O amor, puro, não se encerra, não se enterra... É uno, invisível, indivisível, eterno.  De uma pequena chama, nasce uma parceria inexplicável, depois tolerável, depois confiável, depois compreendida,  comprometida...  Vira labareda, que, assoprada, permanece e cresce.  Clarão bonito e inapagável, que alumia o inalcançável”.

Senta todas as noites na calçada ou nas areias frias da rua, rodeada de crianças, para contar histórias de príncipes e de princesas, da luta do bem contra o mal.  Fred deita a cabeça sobre suas coxas macias, enquanto a ouve.  Às vezes dorme.

As crianças insistem para que ela conte a história de Seo Pereira, a história que ele próprio relutava em contar.  Mesmo sentindo-se constrangida, porque Seo Pereira lhe pedira para nunca se pronunciar a respeito, aquiesce.  Para ela, pedidos de crianças são determinações de Deus.  

Relembra, um pouco, o momento em que o encontra desfalecido na beira-mar, quando o salva milagrosamente.  E prossegue, contando um trecho da página singela de uma longa história.

-
Pereira era um poeta e, pra sobreviver, tornou-se pescador. Morava no outro lado do rio-mar, lugarejo ainda mais pobre do que Cabo de Areias. 

De lá se avista o cais do porto, especialmente à noite, quando iluminado.   E, se há navio ao largo, o mar parece um quadro de beleza estonteante
...”.


Sim, dona Quina, mas continue a história! – Cobram as crianças, quando percebem o estratégico desvio do assunto.

“Ah, sim! Ele se acasala com uma mulher bonita e bastante jovem.  Passa a chamá-la de `Santa´. Os dois se amam de verdade.  Ela logo engravida.  Primeiro filho.  Quer dar de presente ao seu amor a prova do seu amor.
Pela indigência do ambiente, à época, nem se cogita de gravidez com acompanhamento médico.   O único feito, pelo que me parece, é a marcação cuidadosa na folhinha da parede, todos os dias, na ânsia de se completar o nono mês de gestação.  Completa.  Santa entra em trabalho de parto.  A parteira do lugarejo, sem recursos adequados para cuidar de um caso que lhe parece arriscado, aconselha Pereira a levá-la, com urgência, a uma maternidade em Neves, a mais próxima.

Madrugada.  Não há barco ou barcaça disponível.  Santa se esvai em sangue. 
As horas também se esvaem.   Preamar.

Pereira tem que atravessar o rio-mar para salvar a mulher e o seu filho.  Chegando aqui em Cabo de Areias, conforme o seu plano, ancora próximo ao cais do porto e pede uma ambulância – em Neves – pelo telefone da ferrovia.  Tudo no momento difícil em que as cidades dormem.  Busca aflitiva de esperança;  de um barco veloz;  de alguém que possa ajudá-lo nessa impetuosa faina.  Tudo a depender de força, velocidade de raciocínio, coragem, decisão...
Decide.
Inicia a heroica travessia em sua velha jangada de vela quase esfarrapada. Deus não está dormindo.  Salvará, sim, a mulher e o filho
o presente do seu amor, tão aguardado. 

Sozinho, rola a jangada na areia até a beira-mar.  Senta a mulher no banco traseiro.  Dá nova disposição à vela, buscando a posição do vento e, resoluto, se põe a navegar.

Haja vento!  Haja mar! 

Serve de bússola a luz distante do cais do porto. 


Meio do caminho. Rumo certo.  Sensação de alívio no respirar forte de um guerreiro.  Falta só um pouco para salvar, sim, o seu tesouro, a razão forte de sua missão na Terra.  Navega e sonha.  Sonha qual um poeta... 

De repente, uma brusca corrente marinha arrasta a jangada, que balouça, indomável.  Encontro do rio com o mar.  Sensação de quem foi pego pelas pororocas.  A mulher chora de medo e de dor.  Pereira cuida da jangada, tentando navegar em bolina, para bem aproveitar o vento e desviá-la da correnteza.  Cuida da jangada e da mulher, que apoiada no banco de ré, rezava pra tudo dar certo.  Vez ou outra, ela grita e se impacienta, com os calcanhares apoiados nas mimburas de bombordo ou de boreste, contorcendo-se prum lado e pro outro.  Fortes contrações uterinas...  Pereira segura com força o cabo da vela preso à adriça, ao tempo em que diz palavras doces para transmitir sua força à companheira enfraquecida.  Pela proximidade da luz do cais do porto, sabe estar chegando em terra firme. 


– ´Coragem!  Pense em nosso filho!` – grita contra a ventania.

Noutro momento crítico da dor, a pobre mulher, já sem forças, desliza o calcanhar, acidentalmente.  O corpo grávido rola sobre a madeira molhada e escorregadia. 
Pereira larga o comando da jangada para reerguê-la. 
Já prestes a alcançá-la, uma onda forte e repentina a arrebata, indefesa”
.

 

As crianças, assustadas, veem lágrimas rolando na face de dona Quina, condoída com aquele momento angustiante dos dois navegantes, como se Santa fosse a sua mais querida filha. Estavam todas arrepiadas com o rumo de uma história tão diferente das outras histórias que ela muito feliz contava. Dona Quina enxuga os olhos com a própria saia, reanima-se e parte para o desfecho.

– ”Pereira, mais que depressa, atira-se ao mar.   Precisa trazer sua mulher de volta.  Precisa salvar o filho, com o qual ela quer lhe presentear.  Precisa também da jangada, que segue, sem jangadeiro, em pleno mar.

Mergulha e mergulha, na ânsia de tocar o corpo da Santa querida, do seu futuro, da sua felicidade, da sua vida, que afunda ali aos seus pés em inalcançável redemoinho. 

O tempo possível para salvá-la se esgota.  Também a fé”
.


– ”O dia começa a clarear quando já nem adianta tanta claridade.  Nenhum vislumbre sequer da família extinta.
Cansado de tanta luta vã, impotente e desinteressado da vida, prestes a se afogar, deixa-se levar pelo mar. 
Corpo a boiar na correnteza sem rumo.  Salva-o um pescador que, em embarcação mais resistente, parte cedo pro alto-mar.  Trouxe-o para a terra. 
A terra onde ele pretendera chegar como guerreiro vitorioso, como marido herói, como um pai semideus. 
A terra onde muito sofreu”
.

                           ***


É quando o salvo, à beira-mar, no meu primeiro dia de enfermeira aposentada.
Deus me deu Pereira de presente, pra cuidar dele e de sua alma inocente, pela vida inteira. 
- A sua ausência provoca um grande vazio em mim, mas bendita seja a sua morte, que pôs um fim nos meus sonhados milagres. 
 

- Por favor, não me peçam pra recontar esta história, que só a vocês contei e que só a mim interessa.  Era uma vez... 
Finalizou dona  Quina, soluçante.


Ninguém ousa perguntar mais nada a dona Quina.  As histórias irreais que ela conta são canções descontraídas de ninar.  As crianças voltam para casa felizes, leves e enfeitiçadas. Sonham coisas bonitas e querem sempre sonhar.  Já um acontecimento da vida real, tal como o que ela acaba de narrar, torna as pessoas medrosas e pensativas, arrebatando-lhes o sono e os sonhos.

Fred toma esse acontecimento como lição.  Pouco a pouco descobre que o mundo convive com muitas situações díspares.

O belo não é bom simplesmente por ser belo.

O mar é belo, mas ninguém se iluda com a formosura e a serenidade do mar.


O horrível pode ter atributos particulares de beleza, como um naufrágio que se ouse pintar.      

Dona Quina continua sua missão de bem servir à comunidade.  Corre até a rua vizinha para prestar socorro a um garoto que, por empinar uma pipa do grupo rival, recebe uma pedrada na cabeça e sangra muito.  Quando termina o seu trabalho, junta os dois grupos para um encontro de paz.

Arre!...Socorro!...  Uma casa está incendiando! 
Crianças, no quarto onde o pai pendura fios de agave para secar, acham bonito o foguinho que se forma por alguns segundos quando se põe um desses fios na manga do candeeiro aceso.  Acontece de um deles passar do tempo queimando.  O fogo atinge o volume maior de fios e se alastra.  Ao primeiro sinal de fumaça no telhado, dona Quina desperta o lugarejo para apagar o fogo.  Chama Menininho Azevedo, no cais do porto, e, na ferrovia, chama João Antônio e seo Colaço. Eles arrastam toda a comunidade que, com latas d´água na cabeça, no ombro ou nas mãos, atinge o foco do incêndio e evita uma perda maior.


Todos abraçam dona Quina por seu papel de mãe e líder na comunidade. Mulher incansável. Fred, seu admirador, que se destaca por mais correr descalço nas areias, com um calão de água às costas, é abraçado e beijado por ela como prova de carinho e reconhecimento.

                         ***

Faz quase dois anos do falecimento de Seo Pereira.  Dona Quina continua solicitada para contar histórias, à noite, sempre rodeada de crianças. Histórias antigas, contadas e recontadas.  Todos pedem.  Todos querem ouvi-las.

– “Era uma vez uma linda...” – começa e interrompe bruscamente, como a procurar um enredo.

Continue, dona Quina! A senhora nunca esquece nem um pedacinho das histórias!...  Continue!  Qualquer uma serve! – Insiste a turba, impaciente.
 
Cerca de doze crianças estão sentadas na areia à sua volta.  Ela, recostada numa das calçadas mais altas da rua.

Zefalante, que vai passando, alarma: – “Dona Quina está desmaiada!!!...”  

Fred se levanta, rápido, e grita: – “...ela está muito suada, gelada e sem fala!!!


Seo Colaço, pelo espanto da garotada, deduz que dona Quina corre risco de vida.  Sai, apressado, em direção à estação da ferrovia.  Pede, com urgência, a vinda de ambulância e médico, por telefone. Caso demore, já improvisa um trem de socorro até Neves, exclusivamente para levá-la.  João Antônio, com certeza, autorizará.  
Mas, parece estar havendo ajuda divina. O chefe da estação informa que, há uma hora, pedira uma ambulância para a rua da Aurora, ali pertinho.  Não demoraria.  Seo Colaço logo designa funcionários para localizarem a ambulância, enquanto faz os preparativos para o comboio de socorro, inclusive com chamado das equipes de prontidão através do apito da oficina de trens.  Homem ágil, resoluto, prestativo, de há muito coordena com eficiência situações de emergência. 


Ambulância localizada na rua da Aurora, mas não pode entrar na arenosa rua da Borboleta.

A equipe médica, solícita, se desloca apressadamente, a pé.  Uma multidão de crianças, mensageiras espirituais de Deus, cerca dona Quina, que transpira um suor amarelado.  Removida para local mais claro, constata-se: acidente cardiovascular.   A médica prescreve medicação de urgência, injetável.  Alguém teria que correr até a farmácia para adquiri-la.


Fred se dispõe, famoso por ser o maior corredor nas areias frouxas de Cabo de Areias. Correria mais depressa ainda para salvar dona Quina.

Prende a receita na mão e parte para a farmácia de seo Marinoni...


Sob a luz de candeeiro, seo Marinoni lê a prescrição médica com dificuldade e... pronto!
 
Anota o valor na conta de seo Colaço, a pedido de Fred.


Nem precisa empacotar, seo Marinoni.  O caso é de urgência! – Volta Fred na mesma velocidade com que veio, consciente de que está fazendo o mínimo por aquela santa mulher, a mulher de sua paixão... 

Na chegada, todos o admiram pela rapidez.
 
Fica chocado ao vê-la com um corte recente na artéria do braço esquerdo. Vê um sangue coagulado, quase da cor da pele da paciente - que parece dormir, que parece sorrir...  Entrega à médica o medicamento.


Oh, não!... Volte mais rápido ainda, filhinho!  Este medicamento é via oral, não há como administrá-lo. Por isso solicitei injetável!... 
Eu escrevi bem legível na prescrição.  Por favor, não perca um segundo sequer no caminho!
 – Implorou a médica, controlando sua tensão.


Fred se sente culpado. Leu a receita no balcão, quando seo Marinoni trouxe o candeeiro, e viu o termo “injetável”.  Confiou na madureza do farmacêutico e, já por falta de luz no balcão, deixou de conferir esse e outros dados quando a caixa do medicamento lhe foi entregue.

Corre mais do que antes e, ao se aproximar da farmácia, logo grita: – “Seo Marinoni, depressa, o remédio é injetável!  A médica disse para eu não perder sequer um segundo!...”.
 

Seo Marinoni também foi rápido. Fred quase não para, para a troca, e volta no mesmo embalo.  Quer salvar a vida de dona Quina, como ela um dia o salvou.  Quer que ela o chame de herói; de campeão de corrida nas areias; de filho – como costuma chamar.   Corre desesperadamente, quase voando... 

Pobre dona Quina!  Partiu sem receber o último beijo de Fred.  Enfarto fulminante.  Sequer experimentou a medicação prescrita e buscada com tanto amor.  As crianças choram, abraçando-a.  A médica também chora, porque percebe, pelo semblante compungitivo das pessoas, que o vilarejo teve uma enorme perda. 

Fred está desolado, sente-se culpado e incompetente.  Sabe que vai carregar essa culpa pro resto da vida.  Chora como as outras crianças, que lhe contam as últimas palavras de dona Quina, no último momento de lucidez, tão logo lhe cortaram a artéria: “...o senhor rei mandou dizer...”  Era como uma vinheta de remate, que ela utilizava ao acabar uma história.

Morre serena, como viveu.  Quieta.  Suave. Cercada de filhos que a adotaram como mãe, cujo crescimento ela acompanhou, inclusive no amor.  Morre rodeada de solidariedade humana, como viveu, doando suor e sangue para o bem da humanidade.  Tantas vidas salvou!... 
A muitos encantou com o seu jeito brando de contar histórias, que encerrava sempre na exata hora em que morreu, e com uma breve advertência:
   – “...amanhã é dia de trabalho e de escola;  é outro dia!”.
 
Tudo há de continuar, sim, no outro dia – mas agora sem ela.  Que história estaria ela contando pra si mesma no seu último momento, quando iniciou com: 
Era uma vez uma linda...”; 
e terminou com: 
“...O senhor rei mandou dizer...” ?!

Quis dizer, certamente, que o conteúdo inserido entre esses dois pontos (início e fim) deve ser interpretado como a história de nossas vidas, que um dia possa ser contada livre de máculas e plena de lições. 

Viveu e morreu contando histórias, aliviando dores, amando a muitos e sonhando com um mundo melhor para todos.

O lugarejo inteiro se comove com a grande perda.


Ao sepultamento comparecem todas..., todas as crianças do vilarejo, inclusive as de colo.

O cemitério mais parece uma escola em hora de recreio.  As crianças, correndo e brincando como se estivessem num parque de diversões, esboçam um ar de felicidade inusitado naquele outrora silencioso dormitório de almas.   Uma mais que merecida festa de despedida para dona Quina.


As imagens e a história de Seo Pereira e dona Quina ficam encardidas para sempre na mente de Fred, que promete a si mesmo um dia revelar para o mundo as sofridas virtudes dos dois.

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Nota:
Esta história continua.  Fred, ao crescer, apaixona-se por uma criatura em quem vê a humildade, o sofrimento e todas as qualidades feminis de dona Quina.      Fará parte do romance "Amar a Dois Sobre Todas as Coisas".

Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 09/04/2011
Alterado em 26/07/2011


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