Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

           NOSSO AMOR SE FUNDIU NO GELO

Fred integra uma equipe de seis executivos incumbida da reestruturação de serviços numa das agências de sua empresa, em Sambastian.   Procede de Neves, metrópole de menor porte, situada numa das regiões menos frias do país, e pretende cumprir os seis meses da árdua missão. Com o fito de reduzir gastos, hospeda-se no mesmo hotel, próximo ao local de trabalho, onde já se encontram outros dois colegas da equipe: Saulo e Wilma.
 

Essa cidade lhe lembra Irma, que ali fixou residência desde que se casou, há cerca de cinco anos.  É a mulher que lhe traz belas recordações e que deixou vivas raízes em seu coração.  Ele a  respeita tanto quanto ainda a ama.  A bem da verdade, há quase dez anos não a vê, mas ainda alimenta a expectativa de vê-la, sim, somente vê-la.  Sabe estar, agora, mais perto dessa doce criatura, prisioneira perpétua de seus pensamentos.  Quer tê-la nos olhos, mesmo que seja essa a sua última imagem.  Repudia a sensação de total desenlace ou completa incisão numa duradoura relação a dois.  Espera alcançar a chance de um dia, ao menos, recolocá-la no rol de suas grandes amizades.  Isso basta, para o conforto de sua alma.  

E, para encontrar Irma, quer agir até, se necessário, sub-repticiamente, sem que uma terceira pessoa, por mais íntima que seja, venha a saber. 

Poderá tentar - quem sabe! - uma caça furtiva, mesmo ciente de que um só movimento em falso trará sérios danos à reputação dos dois.   Não!  Jamais a exporá a tamanho risco!

Aquieta-se, principalmente porque, em conversa com Saulo, veio a descobrir que esse seu companheiro de trabalho tem alguma, embora longínqua, relação de parentesco com o esposo de Irma.    Pela mesma fonte, soube que ela se formou em medicina, especializou-se em gastrenterologia e presta atendimento nalguns hospitais da cidade.  Tudo fácil, mas – raciocina – qualquer passo nessa rota, delineada apenas pelo Saulo, pode levar seu objetivo a um resultado desastroso.  Aquieta-se de uma vez por todas, como se fosse possível esquecer tudo.  Respeita demais a sua amada secreta.  Respeita também o Saulo, homem pacato, sereno e de conduta exemplar.  Comportamento que lhe rende o tratamento de monge entre os seus confrades.

A missão na agência se desenvolve pacífica e paulatinamente, com raros entraves burocráticos. Está completando o terceiro mês quando, de repente, um emissário da direção geral da empresa traz a incumbência de reduzir a equipe à metade.  Em decorrência, notifica Fred, Saulo e Wilma para, em dez dias, concluírem suas tarefas, retornando, em seguida, aos seus núcleos de origem.  Para estes, o tempo muda.  O tempo urge.   É preciso acabar tudo no prazo previsto.  Para Fred é importante, realmente, acabar tudo...

Foi-se mais um dia de análise de atribuições, confecção de organogramas, fluxogramas e relatórios.  Trabalho cansativo.  Fred, Saulo e Wilma, terminada a jornada à noite, resolvem comer alguma coisa numa lanchonete do entorno do hotel.

Matam a fome e, ainda revelando cansaço, despedem-se e se trancam nos seus aposentos.


Quase duas da manhã, Fred e Wilma são alertados pela portaria do hotel de que Saulo pedira socorro médico de urgência.  O lanche, com certeza, não lhe fez bem.  Em menor grau, Fred e Wilma também se ressentem de certo abarrotamento estomacal.  Os três são removidos para o hospital “Samaristene”, o mais próximo do hotel.

Muita aflição e suspense pelo resto da madrugada.  Saulo está inconsciente.  Suspeita de envenenamento alimentar tipo botulismo.  Os exames se repetem.   As chances de sobrevivência diminuem.  Resta muito pouco a fazer.  Última tentativa para salvar o agonizante: buscar uma vacina antibotulismo tipo “B”, somente existente nos Estados Unidos.   Os colegas da equipe se mobilizam, inclusive funcionários da agência, no sentido de apressar a vinda do medicamento.  Utiliza-se até o denodado serviço de radioamadorismo. 

A vacina chega, via aérea, na noite seguinte.  Os que foram esperá-la no aeroporto – Bringel, Cordeiro, Viana... –, vacina nas mãos e já com tudo engatilhado para não se perder um único segundo até o hospital, choram com a notícia, também recém-chegada, de que Saulo acabara de partir.


Fred e Wilma continuaram internados no mesmo hospital por mais um dia, sob rigorosa observação e cuidados médicos.   São autorizados a embarcar para os seus núcleos de destino tão logo recebam alta médica.  Ambos estão cansados dos últimos dias de intenso trabalho e da noite desdormida. 

Faz muito frio.  Fred tira a camisa, porque necessita trocá-la.  Só por um momento, abraça-se ao travesseiro.  Não domina o sono.

Descamisado e ébrio de sono, dorme... e sonha:

                                     ***

Sonha aterrissando num lugar distante, ele e Irma, no sopé de um contraforte de gelo.

Mesmo com pouca roupa, caminham, displicentemente, como se estivessem numa praia deserta e quente.

Mais adiante, rodeados de nuvens e tiritando de frio, param frente à vertente de uma geleira que se desfaz. 

Deitam-se no escondido de um chão de pedra, lisa, límpida e pura como um cristal, ainda enxuta e macia.

Precisam descansar de tanto andar.

Quase congelados, viram-se dependentes do calor gerado pela energia do outro.

Cingem-se, pois, num venturoso abraço de amantes...

Um sonho, apenas. 

Um sonho prolongado, que repete outros tempos, outras formas de amar, outras cenas...

Um sonho que os transporta, tontos de prazer, pelos dois hemisférios de um planeta  pequeno, despovoado, exclusivo, onde tudo é belo e pintado de um branco puro, imaculado, nunca visto.

Por ficarem tanto tempo recobertos de névoas glaciais, parecem estar gessados e resguardados num amplo lençol de gelo.      

Não conseguem nem querem se desgarrar.

Quanto mais se alimentam um do outro, mais se unificam e se petrificam.

Desejam-se num só corpo.

Afinal, habitam um planeta onde as formas, o tempo e o risco são variáveis nulas.

Aí, em transe, quase xifópagos,  um  tanto  metamorfoseados, são descobertos por Saulo, em trânsito.

Alto e robusto, mudo e sisudo, trajado de forma estranha, qual um monge - talvez!... - meneia a cabeça num cumprimento cordial  e – sorridente, feliz...
 prossegue em sua missão, subindo, veloz, pelos caminhos mais aclives de uma gigantesca montanha.

E lhes dá a bênção, em nome de Deus ou,         

simplesmente, lhes dá adeus...


Lá do topo, atira um jaleco branco, perfumado, para proteger os dois...

Contrito e sereno, mais parecido a um pássaro pequeno, esvoaça à procura do Céu...

Desapareceu.         


                                     ***

Fred desperta às seis e meia da manhã, com o chamado da enfermeira plantonista, que anuncia a mudança da equipe de enfermagem.  Anuncia ainda, que há um registro na tabuleta, feito pela última médica plantonista, informando sua alta a partir das oito horas da manhã.

Atordoado, levanta-se, apressado.  Atira para o recanto da parede toda a roupa usada da cama e se prepara para sair.

Prepara-se, não resignado, mas mutilado pela ausência da mulher do seu sonho.
  

Wilma, igualmente fora de risco, espera-o na recepção.

Ansiosa para viajar, tem nas mãos o resultado dos exames – dos dois – e os laudos médicos concedendo-lhes a alta.
 

Fred, ao descer, recebe o seu laudo das mãos de Wilma e, lendo-o, corre à secretaria, assustado.

Confirma que o laudo fora assinado pela doutora Irma.

Diz que a conhece, que ela é sua conterrânea e que precisa falar-lhe de alguma forma.  Pede seu telefone de residência.  Nada consegue, de vez que a secretaria é impedida de fornecer dados pessoais dos servidores da casa.


Pelo menos, para não ficar tão frustrado, lê num quadro o horário de plantão da sua amada secreta.

Célere, vai ao hotel e, de olho no relógio, prepara a mala de qualquer jeito.  Ruma para o aeroporto.
Adquire passagem para o voo das dez horas com destino a Neves.  São quase dez horas. Início do plantão de Irma no hospital.  Escolhe o orelhão mais distanciado do ruído dos passantes e dos despachantes.

Liga para ela, denotando nervosismo.

Ela atende e o felicita pelo aniversário.

Fica surpreso. Aniversário?!... Em meio aos transtornos ocorridos, perdera a noção do tempo.  Não se lembra se de fato está aniversariando.  Ameaça desligar.  Quer, logo, logo, ganhar o espaço...  Fala do seu trabalho, quase em balbucios, e da perda de um amigo.

Ela o tranquiliza e responde que acompanhou o caso, até em atenção a pedidos da família do esposo.  Lamentou a perda.

Fred se lastima por não terem se encontrado.
E ela responde que se encontraram, sim!... e lhe conta como:

                                      ***

Achei ótimo teres dormido a noite inteira!

Só assim tive a chance de ficar um pouco mais contigo!...

Entrei em teu apartamento, pé ante pé...

Dormias, displicentemente, qual uma criança.

Fechei a janela, porque o frio era intenso e tu estavas gelado.

Medi tua pressão e auscultei teu coração.

Estavas bem, mas, sem camisa, senti que pegarias um resfriado.

Também não quis te ver com traje de doente, com roupa de hospital...

Aí, envolvi o teu tronco com o meu próprio jaleco, limpo, perfumado... (vesti o de reserva).

Ao me debruçar pra te vestir, tu me abraçaste, leve e demoradamente.

E eu o permiti, porque dormias e sonhavas e me dizias algo que eu tentava captar...

Pensei na surpresa que terias ao despertar, mas, lamento, sempre me perdeste porque nunca despertaste nos momentos para mim mais sublimes...

Uma vez ou outra, tu ficas míope ou sonolento diante de meus gestos!...

Como das outras vezes, não ousei te acordar...

E te deixei a sós, com o teu sonho”.


Desligou.

Fred volta a ligar e ela, irada, se queixa de seu relaxamento:

Jogaste o meu jaleco (perfumado com o meu perfume), misturado com os lençóis usados, num recanto qualquer do quarto do hospital ! . . . 

Não foi assim que sempre fizeste comigo, quando pensavas que me amavas?!...”


Antes de desligar:

Eu te desejo uma boa viagem, Fred, e que sejas muito feliz em tua caminhada”.

“Sim, quase esqueci!
 

O corpo do Saulo está sendo trasladado para a cidade de Neves, hoje de manhã, no voo das dez horas.

Aceita meus pêsames...
                                     pelas enormes perdas!” 



                                ***
Desligou. 
 

No balcão, Fred prepara o seu “check-in” e embarca.

No avião, respira fundo e conversa com Irma, em monólogo:

Depois de tudo, tenho a convicção de que fui um simples corpo inerte trasladado do meu passado. 

É  só...

Nunca vou aprender a me despedir de você!

Boa  sorte e até breve,  IRMA !" 
Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 23/05/2011
Alterado em 19/09/2011


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras