Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

O MAIS FELIZ DOS MORTOS

 
Hoje é meu aniversário !
Dia de conferir meus planos feitos noutros natalícios. 
De verificar
se, de fato, cumpri compromissos certos ou os assumi por engano.
Dia de tirar retrato e de comparar minha cara com a dos outros anos.
De me retratar com alguém, pedir perdão, mesmo sem me 
lembrar de lhe haver ofendido ou caluniado.  
Quem ofende, às
vezes esquece.
Dia de me sentir mais velho..., quero dizer:
mais maduro;  
mais 
semente; 
mais presente; 
mais esquecido do que fiz; 
mais
lembrado do que não fiz;
mais culpado;
mais sujeito ao cansaço; 

mais carente de abraços e de meus próprios braços;
mais feliz...


Feliz?!...

Quem se arvora a dizer: “sou feliz!”, num mundo  onde a crueldade a tudo se sobrepõe;  num mundo onde a miséria nos expõe!

Sim!  Nos expõe - foi o que eu disse.


Sou feliz, mesmo assim, porque consegui ultrapassar barreiras... 

E quantas!...

Sou feliz, porque minhas feridas não mais me doem e as mágoas já se afogaram, de há muito, nas águas dos meus lava-pés nas vazantes dos rios e igarapés que atravessei.

Sou feliz, porque me reconheço eterno devedor da solidariedade humana e busco saldar essa conta.

Sou feliz, também, porque:

apesar das sem-razões das guerras; 

do autoritarismo, ditaduras, chicotes, canhões e grilhões; 
da falta de ética e dos senões;
das vis ou vãs filosofias;
da hipocrisia e das ilusões de falsos sermões;
das explorações (econômicas e outras mais); 
das imposições 
ideológicas, religiosas e culturais; 
das impensadas e não sopesadas sentenças judiciais e das indiferenças, do tanto faz...,
sobrevivi


Sobrevivi a tudo isto que ainda combato, com as mesmas armas com que sempre combati.

Sou feliz, ainda mais, porque, quase tudo que aí está em moda ou que está em uso, eu vi nascer ou ser desentocado para o benefício da coletividade.
Por exemplo:


O rádio:  o primeiro da minha cidade, ouvi em 1948.   Todas as tardes minha mãe me dava banho, trocava minha roupa e me punha, solenemente, junto aos outros vizinhos a escutar (não sei o quê!).

O telégrafo:   aprendi  o  código  Morse  ainda  na  menoridade  – 1954 –  e,  através  das  linhas  e  pontos  digitados,  conquistei  amigos que  nunca  abracei.
Primórdios da Internet.
Hoje, faz-se a mesma coisa de forma mais veloz.


O cinema:  em preto e branco.  Quase alcancei o cinema mudo.  Vi-o já sonorizado, porém as fitas se partiam como se fossem serpentinas de papel.  Hoje está em DVD dentro de nossas casas.

O trem:  principal transporte coletivo da década de cinquenta.  Os vagões, de primeira ou de segunda classe, se enchiam da fumaça da locomotiva à lenha – a saudosa “maria-fumaça”.   Romantismo. Mas, que beleza se vê, hoje, viajando imprensado num metrô ou amarrado num trem-bala?!... Se é só pra esconder a beleza, de nada valem ser  climatizados!

O bonde:  complementava o trem como transporte coletivo, porém somente atuando na área urbana.  Seus trilhos foram arrancados para ceder espaço aos automóveis.   A diferença é que os bondes desenvolviam até vinte quilômetros por hora.  Eu via toda a cidade que passava do lado de fora.

O automóvel: entrar num deles na década de cinquenta era como embarcar num avião.  Solenidade com hora e destino marcados.  Acesso absolutamente restrito.  Semáforos eram  palavrões.  Hoje, o que mais se ouve são palavrões nos semáforos. 

O telefone:  ligação difícil e demorada. Muitas vezes, o trem atrasava sua partida por aguardar que uma chamada telefônica se completasse. Haviam esquecido os códigos indígenas nas Mensagens com a fumaça.

Fax:  vibrei, no final da década de sessenta, com a transmissão integral de um meu documento de Recife para Brasília.  Era o uso da comunicação via satélite. Tudo tendo como princípio o sistema binário do telégrafo:
linha/ponto  –  ligado/desligado  –  um
/zero...
A máquina parece ter adotado um sistema numérico mais simplificado do que o nosso 
complicado sistema decimal.  Tudo calcula com mais rapidez. 

Televisão:  vi o primeiro, em preto e branco, na pracinha de minha cidade, no início da década de sessenta.  Chiava e escondia a imagem conforme os ventos.  Só na década de setenta entrou o primeiro televisor em minha casa, ainda em preto e branco.  Quase perco a faculdade por gastar tantas horas me deliciando com as belas imagens.

Cinema colorido:  grandes emoções do final da década de cinquenta. significava o ápice da  hollywoodiana  indústria  cinematográfica.

Bancos:  ingressei numa instituição financeira em 1964, quando tudo se fazia manualmente, inclusive com o uso de fichas gráficas para controle da movimentação bancária dos clientes. Tudo à mão!

Computadores em grandes armaduras:  colegas de trabalho que me antecederam numa equipe de programação, lidaram com os primeiros computadores da instituição.  Memória resguardada numa sala especial.   Hoje há memórias bem menores que um dedal.

Microcomputadores:  assim como os celulares,   vão com a gente pra todos os lugares.  Guardam todas as nossas lembranças, mas somos, deles, simples dependentes ou memórias auxiliares.
 
Claro que não tenho a pretensão de relacionar todas as coisas que advieram dos pilares que praticamente vi nascer!
Meu maior interesse é dizer aos meus amigos, todos convivas desta festa de reflexão, de prestação de contas, de reconciliação (com aqueles a quem, involuntariamente, tratei com maledicências)...
que tive o divinal merecimento de me tornar um durázio septuagenário com pleno vigor para ainda batalhar pela vida.  Projetos de curto prazo, sei !
Um durázio abençoado, que ainda não sabe o que é sentir uma dor  física. 
Pai de três filhas que tudo aprenderam com base no amor. 

Avô de três netos e duas netas, que ainda me veem como um ingênuo mágico, um inocente diretor de teatro ou um perna-de-pau jogador de futebol e de almofadas. 
Sogro de três amigos, 
fortes, capazes e inteligentes, que só vieram multiplicar o amor que entrelaça a família.

Sou, portanto, o mais feliz dos ainda vivos do mundo inteiro:

Porque, de alguma forma, assisti o parto de todas as coisas boas que o mundo ora nos propicia, como se tivesse visto o renascer de tudo.

Porque tenho grandes amigos que me acercam e aos quais devoto gratidão pela coragem que me dão e pelos abraços recebidos.
 

Porque, mais ainda, tenho uma família que me fez e me faz viver e crescer.

Esticar a missão na Terra é o desejo de todos os viventes.  Mas, lhes digo com a sinceridade de minh´alma, que, se Deus me levar nesta hora, serei eu o mais feliz dos mortos. 
         

Vai para todos o meu expressivo abraço.
                                                             
                                                                        Fred
Recife, 31/maio/2011.

 

Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 01/06/2011
Alterado em 02/04/2012


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