Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

NÃO MAIS ME VERÁS !                  Parte V


Estação rodoviária, em Neves.  Parece um ébrio, ou mambembe.  Bilhete de embarque no bolso.  Recosta-se à parede e aguarda o ônibus das nove horas.  As dores o impedem de dormir.

Lá vem Maria, célere, pés arrastando as sandálias desgastadas pelo uso.  Vestes molhadas, grudadas no corpo negro. Sabia do horário de embarque de Fred  Trouxe-lhe a mala.  Também umas flores, que Irma lhe pede para oferecer  – ”com amor” –  à sua Mabel. 

Abraçam-se os dois.  Ele agradece tudo com uma prece.
 

Estação rodoviária, em Mauricea.  Um banho de água fria.   Mesmo contundido, paramenta-se para o sacrifício da festa no clube dos antigos engenheiros da ferrovia.  Perfuma-se.  Mabel disse estar lá à sua espera.  Lê o jornal, enquanto engraxa o sapato.  Vê o anúncio:  “UM DIA INTEIRO DE FESTA”.  Como vou suportar?...   

Corpo moído.  Ela pedirá explicações.  Inventará uma desculpa.   – ”Seja o que Deus quiser!”.  

Toma um táxi, leva as flores e, no caminho, conjetura: – “Ela adornará a mesa e sua vaidade.  Até se assemelham, em beleza e função!  A flor: órgão reprodutor do reino vegetal.  Ela: órgão reprodutor de uma bela árvore genealógica.  Um gineceu ávido da presença do estame que está em mim”.


 Chega ao clube.  Não tem o convite.  – “Minha mulher já deve ter entrado!” – desculpa-se.   Um amigo facilita o ingresso.  As dores o obrigam a encontrar, logo, a mesa reservada. 

Reconhece alguns velhos “amigos prediletos”. Começa a ouvir canções remexidas na poeira da história. Lamentos cantados, asfixiados... Poemas – até escritos na hora, rebuscados da memória. 

Contorce-se em fisgadas no corpo.  Troca de posição na cadeira.  Outro sedativo, gelo e água mineral.  Pingados risos à socapa.  Vê que todos escondem o mesmo mal. 

– “Que é de Mabel?


Aí, vê obesos que não caminham sem o auxílio da bengala ou da muleta companheira:

– “Que homem vive sem muletas?  Sejam infantes ou quedos longevos, todos carecem desse suplemento feminino para caminhar– deduz, circunspeto.


Vê, também, mulheres pintadas da cabeça aos pés, exibindo seus anéis e os retratos amarelados da juventude.  Uma forma de disfarçar os próprios retraços “em branco e preto”, ou enganar a si mesmas, caçoando do seu novo jeito.  Mais pra rosas, preferem ser “as moças... da janela”, achando que as cantadas eram só pra elas. 

Veem-se outras, noutras.  Repudiam a beleza que a privilegiada longevidade lhes doa.

“Parou para ouvir” de mais perto as cantigas amigas do seu tempo.  Quase todos cantam: “velhos moços”.  E, no entanto, é preciso cantar!...  “Velhos fracos”, dançam.

Fred canta, aplaude e imagina a companhia de sua “muleta insuperável!”.  Larga as flores sobre a mesa e vai em busca de Mabel.  – “Ela não pode perder esta festa!”.



A casa está vazia.  Acende a luz da sala de jantar.  Sobre a mesa, há algo escrito num papel de receituário, preso por uma caneta gravada com o nome de IRMA

Assusta-se e lê o conteúdo, datado de 08 de outubro de 1993: 


Fred: Acho triste o desamor. Igualmente triste é o amor que não foi.  Mas o amor que não foi tem a compensação de gerar poesias e belos contos.  Então, se isso é tudo, vale a pena a separação.  Aí, a dor da separação enseja novos poemas, que dizem valer a  pena sentir saudade.  E a saudade dá à luz um sentimento que fica, residual, ainda vivo.  E me pergunto: se estivéssemos juntos, será que o amor seria para nós tão AMOR?  Por isso, digo que, mesmo sofrido, o maior de todos os amores é sempre aquele que não foi, o que não aconteceu.  Acho até imprescindível que ele continue vivo como prêmio de consolação pelo desgaste natural do cotidiano com o outro amor, o escolhido.  Fica em nossas memórias a sensação do que teria sido melhor.  Réstia de uma juventude que já não existe...  Beijos. Irma

Fred não acredita, mas se sente traído pela criatura mais querida de sua vida:

– “Uma carta para o meu ego. Por que razão, Irma, trouxeste-a pra Mabel?”

Há algo mais escrito por Mabel

com a tinta vermelha da caneta de Irma

no verso do mesmo papel:

 “NÃO MAIS ME VERÁS !”



 
Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 05/11/2011
Alterado em 05/11/2011
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