Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

A  BONECA  DOS  CABELOS  DE  SISAL


 
Ouvem-se risos e queixumes infantis vindos do único quarto de dormir da casa.   Porta entreaberta, Zeza brinca displicentemente com Mabel, sua vizinha do lado direito.  Ambas têm oito anos de vida e inocência.  Menininhas pobres em cidade pobre.  Divertem-se com bonecas feitas de pano, trazidas da feira.
 
O candeeiro, manga de vidro, pavio umedecido a querosene, já está clareando o ambiente, porque é quase noite.    Deveria ficar sobre uma banqueta rente à cama, mas Mabel dele se apodera logo que é acesa a chama.  Criativa, aproxima a boneca, lentamente, da manga do candeeiro, projetando uma bela imagem escura na parede cinza, quase branca.  Um cineminha de verdade. 

Zeza acha interessante e divertido.  Igualmente criativa, mostra que a imagem negra da boneca da parede pode ter os cabelos loiros.    E, com um pouco de ingenuidade, aponta, no ângulo esquerdo superior do quarto – pertinho da sombra gigante da boneca – uma braçada de fios de agave “sizalana”, produto altamente inflamável, especialmente quando seus fios já estão desumidificados.  Amarrado a uma altura cuidadosamente distanciada da ação das crianças, pende dos caibros do telhado em forma escultural, tal qual a juba de um enorme leão.  Desde que, dessa juba de sisal, se aproxime a imagem escura da boneca projetada pela luz do candeeiro, aparece na parede a figura de uma mulher negra de cabeleira loira, quase igual à do cartaz pregado na parede dos cinemas das cidades grandes.  É essa a imaginação de Zeza.
 
Mabel, entretanto, quer mais aventura.  Abandona o pequeno cinema e insiste por arrancar uma porção dos fios de agave (ou sisal).  Sua intenção é mudar, realmente, a cor dos cabelos da sua boneca de pano, de verdade.  Desejos conflitantes.  Uma pensa na fantasia (só a imagem na parede), outra na realidade.

Não, Mabel!  Papai pediu pra não mexer nesse agave.  É pra fazer cordas e tapetes – suplica Zeza, preocupada com o que vai dizer quando o pai, ferroviário, retornar de mais uma viagem de trem.

Mas eu mexo, sim!  Nem seu pai tá aqui, nem você manda em mim!... – responde Mabel, com valentia, repetindo um provável comportamento aprendido.   E corre até a cozinha à procura de uma vassoura e uma faca.

Fred, também ainda criança – quatro anos mais velho que a irmã, Zeza –, faz tarefa escolar no corredor, sob a luz de outro candeeiro, fumacento por não ter a manga de vidro.  Ainda tenta impedir a busca.  Termina indo iluminar a cozinha, rendido pelos caprichos e choramingos impacientes da vizinha Mabel.

Não, Mabel! Já te disse que papai briga comigo!  Vai pensar que fui eu quem puxou esses fios de agave!... – Zeza reclama mais uma vez, agastada, porque a amiguinha já consegue repuxar com a vassoura uma parte das fibras.  Precisa dizer logo a algum adulto para consertar o malfeito.  Mabel insiste em puxar os fios.  Zeza, cada vez mais preocupada com o que o pai possa dizer, corre, chorosa e desesperada, em busca da proteção da mãe.  Alguém precisa fazer alguma coisa.
 
Dona Yole se encontra em conversa animada na calçada da vizinha, dona Elisa – mãe de Mabel – e dá pouca atenção aos reclamos de Zeza.    – Pequenos desentendimentos entre crianças – diz.  Dona Elisa concorda e puxa outra conversa.

Nesse ínterim, Mabel, que já baixara uma pequena porção de fibras, tenta cortá-las com a faca e não consegue.  Apela para o calor expelido pela abertura superior da manga do candeeiro.  Segura as fibras com as duas mãos, como se sustentasse os  extremos de uma trança de cabelos.  Aí, ingenuamente, leva-as, já ressequidas, ao calor do candeeiro, desta vez colocado sobre a mesinha de cabeceira da cama.

A princípio – aqui e acolá –, uma fagulha brilha, caminha um pouco e se apaga.  São os fios mais salientes, dispersos do conjunto.  Mabel vibra com aquela beleza pirotécnica...

Mas a festa não durou dois minutos!  Num repente, os fios se partem com um enorme clarão.  Mabel larga tudo e foge assustada.  O candeeiro entorna da mesinha de cabeceira e espalha querosene sobre a cama.    Colchão de capim, o fogo se alastra como um raio. 

Fred corre até o quintal em busca de água da cacimba para apagá-lo.  Cacimba rasa.  Balde pequeno.   Água insuficiente para debelar as chamas, que se estendem.  Quase asfixiado, abre a porta da sala e grita por socorro.

Seo João Antônio, chefe da oficina de trens, retorna do cansaço de sua jornada.  Final dos trabalhos de uma segunda-feira cheia de pequenos problemas.  Tão logo avista o fogacho, aciona seo Colaço – encarregado do socorro – e toda a equipe de trabalho, em regime emergencial, para combater o incêndio, prestes a atingir os outros casebres.  Latas, tonéis, escadas..., tudo chega às rápidas.  Homens habilidosos, sob o comando de seo Colaço, atacam logo a base do fogo.  Grande braçada de agave, em chamas, é retirada e arrastada para a rua.  Fica ali, tal uma fogueira junina, queimando até o fim.  A água, escassa, terá outra serventia. O resto fica mais fácil de controlar e apagar.  Paredes e telhado vão sendo umedecidos.  Quase todas as cacimbas da vizinhança se esgotam.
 
Final de um estrago que poderia trazer consequências drásticas.  Somente algumas telhas e caibros precisam ser substituídos.  A cama e a mesinha de cabeceira, desaparecidas nas cinzas.  Fora a pequena e única mesa da casa, onde Fred cuidava dos deveres escolares, nada mais se salva.  Salvar o quê?
 
Dona Yole agradece a cada um dos que lhe prestaram socorro.  Promete pedir a Deus proteção pra todos eles.  Dará um jeito de dormir na casa acidentada em rede emprestada, mesmo com o cheiro forte de queimado.  Paredes todas molhadas.  Telhado, metade aberto, qual cratera de um vulcão.  A lua clareando o chão.  Lama difícil de remover com uma só lavada.  Tudo escuro e muito mau cheiroso.  Não sobrou candeeiro.

A pedido do chefe da oficina, seo Paulo retorna de viagem no dia seguinte.  Solidários, os colegas de trabalho lhe oferecem material e mão de obra.  Até um colchão lhe foi doado.  Também marceneiro nas horas vagas, improvisa uma cama com madeira igualmente doada.  Perde a matéria-prima para confecção de alguns rolos de corda já encomendados.  Em nenhum momento perde a calma.  Aceita como verdadeiras as explicações dos filhos – Fred e Zeza – sobre as causas do incêndio.  Nada obstante ter distanciado deles o material inflamável, reconhece sua culpa de pai ausente.

- Vim para dizer-lhe que a culpada pelo incêndio foi sua filha, Zeza – fala dona Elisa, num instante em que dona Yole não está em casa, descarregando sua ira, ao saber que seo Paulo não exemplou (leia-se: não espancou) os seus filhos pelo ocorrido.    – Minha Mabel me disse, na hora, que foi a Zeza quem queimou os cabelos de uma boneca muito grande que estava no quarto. Criança não mente.  Filha minha, muito menos!

Boneca!?... – Estranhou seo Paulo.

Sim, senhor Paulo!  Uma boneca bem grande, negra e de cabelos loiros.  Por que é que minha filha Mabel iria inventar?!...  E tem mais:  sua casa pegando fogo e sua mulher batendo papo na minha calçada, como se nada estivesse acontecendo, como se não tivessem crianças cá dentro...

Seo Paulo entende a intenção de sua vizinha, aquieta-se e, imitando-a, prefere acreditar nos seus filhos, na sua família.

Domingo da outra semana.  Dia de folga para os ferroviários que trabalham na oficina.  O lugarejo, situado à beira-mar, é açoitado pelos ventos fortes vindos do norte.  Batidas de portas e de janelas.  Tem que se fechar tudo...

À tarde, dona Elisa larga sobre a mesa um montão de roupas para passar a ferro e resolve, primeiro, trancar-se em seu quarto para uma sesta. 

Mabel e o irmãozinho menor brincam sob a mesa.  Das roupas ali jogadas, pende algum tecido fino e esfiapado.  Ela logo se lembra da queima dos fios desumidificados do agave.   Não alcança o candeeiro, guardado a propósito em lugar que ela não o pudesse pegar.  Encontra o fósforo.  Procura e encontra uma vela.  Acende-a e começa a mostrar para o irmão a beleza pirotécnica dos fiapos, fazendo-os arder até se apagarem.   Não leva muito tempo essa brincadeira.  O tecido logo se inflama.  Ela, perspicaz, põe a vela na mão do irmão e tenta debelar as chamas.  Não consegue.  Clama pela mãe, em tom de desespero, e corre, sabendo-a mal humorada. 

Dona Elisa, irritada por ter sido despertada antes do tempo previsto, abre a porta enraivecida.  Vê o fogo e vê o  filho com uma vela na mão.  Puxa-o para o quarto e trata de espancá-lo, em vez de debelar as chamas.  Enquanto isso, as labaredas crescem.  Ela evita pedir socorro.  Afasta as crianças.  A labareda toma conta do corredor. Acha que não precisa de ajuda. Tenta resolver tudo sozinha.  Não consegue.  Os ventos sopram forte.  As chamas assumem proporções desastrosas e atingem mais dois casebres do lado direito.
 
Domingo.  A equipe de socorro da ferrovia precisa ser acionada por meio de apitos prolongados de alarme, saídos da oficina.  Faz-se o alarme.  Chega o socorro.  Nada mais a apagar.  Mesmo as cinzas vão sendo sopradas pelos ventos até o mar. 

Dona Elisa, sem se comunicar com um só dos seus vizinhos, muda-se para a casa dos pais, numa pequena cidade do interior.  O marido, tripulante de navio mercante, desembarca e, lá, se torna pequeno comerciante.  

Veja agora, caro leitor, como os passos que se dão na vida são interessantes!...

Dezessete anos depois, Fred, o vizinho, irmão da Zeza, se casa com a incendiária, Mabel.  Muitas chamas na lua de mel.

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Nota: 

"SEO" - forma sincopada de SENHOR, preferida pelo autor, em substituição ao axiônimo "SEU" (confundível com o pronome possessivo de mesma grafia).
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Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 02/02/2012
Alterado em 22/01/2017


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