Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

POBRE FAVELA DE RICOS  -  Capítulo I
 

Síndico outra vez?!...  Que Deus me ajude!

Estou em João Pessoa, para onde retornei há cinco anos.  Faz quarenta e cinco, saíra daqui arrastado para o Rio de Janeiro, por interesse da empresa que garantia minha sobrevivência.  Do Rio pulei para Recife, onde criei raízes – durante seguidos trinta e três anos – e me aposentei.  Nessa metrópole, por quase uma década, atuei como síndico do meu prédio. Empenhei-me nas áreas administrativa, jurídico-trabalhista e condominial, mas meu trabalho maior se deu no âmbito comportamental: construí saudáveis amizades e descosturei inimizades.  Fantástica experiência vivida entre o domínio da Casa Grande e a subserviência da Senzala.  Por conta disso, absurdas – embora evitáveis – batalhas levadas ao pódio jurídico.  Depois de tudo, finais felizes e alguns até de certo modo hilariantes.

Minha paixão humorística me pede para debulhar somente as cenas que suscitam a hilaridade, mas valerá a pena mostrar também o lado sério desses acontecimentos.  Acredito que eles servirão de ensinamento e subsídio àqueles que, quando menos esperam, como foi o meu caso, se veem síndicos – preparados ou não para o exercício da função.  Só lhes peço aguardar um pouco, pois que, há dois meses, assumi novamente essa “missão” – aqui em João Pessoa – e já tenho importantes registros em pauta para ordenar, comparar e divulgar. Chegará o momento oportuno.

Aposentado, bem que eu deveria estar contando essas histórias numa cadeira de balanço, não?!... 

Não.  Acostumei-me a despertar com uma agenda na cabeça, por isso aceitei o desafio de ser síndico desta minha nova morada.  Prédio de vinte anos de idade com vinte e dois proprietários (todos, conforme a convenção de condomínio, coproprietários das partes que extrapolam os limites de seus apartamentos: piscina, salão de festas, hall social, sala de esportes, sauna, elevadores, escadarias, caixas d´água, jardins, gerador e todos os móveis externos, máquinas e equipamentos...). Para administrar tudo isso é que me elegeram.  Fácil, não?!...  

E as finanças?  Também considero fácil, porque conheço o trivial da contabilidade e encontro uma reserva equivalente a pouco mais de um mês de arrecadação da taxa condominial.  Além do mais, o que é ótimo, nunca se registrou um único caso de inadimplência. Parabéns, mas será que estamos adimplentes para com o pessoal?


Cinco funcionários dividem os serviços de portaria, vigilância e limpeza do edifício. Pena que alguns proprietários os tratem como se fossem seus empregados domésticos.  Não é raro ouvirem-se gritos de comando, tais como: “Faça assim!”, “Faça assado!”, “Eu já disse que...”, “Vou botar você na rua”...  Legítima macrocefalia.  Quase todos os proprietários exercem o mando.  Uma prova cabal de  desconhecimento das normas.  O condomínio que se  preza precisa ter regras preconcebidas dentro da hierarquia legal, sob pena de não ter vida longa.  Seguir essas regras é um exercício de cidadania, uma opção de convizinhança harmônica e saudável.  Chega de quedas de braço entre moradores e entre estes e... (Ilustraremos alguns casos curiosos nos próximos capítulos).

Acreditem, nada obstante minha longa experiência de síndico vivida em Recife, por estranho que pareça, nas circunstâncias do momento, invade-me o calafrio dos calouros.  Na verdade, “eu nem sinto meus pés no chão”...

É que agora me encontro noutro meio social, em contato com gente de espírito (suposto) provinciano e autocrático.  Parece imutável a valorização do “eu”. Vale somente a consciência individualizada. Boa parte dos proprietários dá ordens imperialistas aos funcionários do prédio.  Vê-se o óbvio. Aqui a mudança comportamental se faz indispensável.  Mas, como falar sobre tão importante assunto para quem a mudança de endereço já foi o suficiente?
 

É confortável e mais seguro morar acima do telhado das antigas mansões, sim, mas é imprescindível aceitar, sem traumas, as regras básicas da consciência coletiva.  Cada proprietário precisa assumir a sua autêntica condição de condômino...  Enquanto não, será mero proprietário.

Daí, sem tocar de imediato nos planos relativos a material e finanças, como é de praxe, fiz, para reflexão dos senhores moradores, minha primeira mensagem como novo síndico, a saber:

“Para melhor nos conhecermos e nos comunicarmos, vai um pouco de nossa história. 
Quero iniciar a conversa com a forma  como se deu a Abolição da Escravatura no Brasil.  Depois que a princesa Izabel assinou a carta, ponto final.  Não se viu mais nada. Os alforriados continuaram na mesma labuta de escravos e não tinham a menor ideia do que significava o termo “liberdade”.  Tanto que permaneceram nas cozinhas (as mulheres) e no campo ou calçadas das CASAS GRANDES (os homens). Dormiam ou se divertiam nas SENZALAS, ainda sob o olhar dos feitores e capatazes...

Com a promulgação da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) por Getúlio Vargas, em 01/05/1943, ficaram de fora o homem do campo e as empregadas domésticas, tudo arranjado em conformidade com a vontade dos latifundiários de então.  A mesma vontade daqueles que, até nossos dias, traziam das cidades do interior uma menininha, quase sempre pretinha, para cuidar de todos os serviços da casa (manhã, tarde, noite, madrugada, sábados, domingos e feriados), em troca de roupas usadas ou de chita e de sobras de comida. Muitas envelheceram analfabetas.  Nem se cogitava de que se estava desestruturando uma família, por pobre que fosse.

Nas cidades, as mansões e casarões – erigidos em bairros nobres – copiaram o formato das Casas Grandes das fazendas, tornando os bairros periféricos verdadeiras Senzalas (locais de apoio dos prestadores de serviço): casebres, mocambos, palhoças, barracos, palafitas...

Veio o crescimento imobiliário e as cidades grandes se verticalizaram.  Casarões viraram modernos edifícios de dez andares em média, que, mesmo assim, não perderam o formato das Casas Grandes, sempre próximas e dependentes do trabalho dos que se aglomeram nas Senzalas, assim:

1 -    na parte superior dos edifícios, apartamentos confortáveis e áreas de completo lazer;

2 -    na parte de baixo, as garagens, reservatórios de água, máquinas e equipamentos, portaria e a própria segurança do prédio sob os cuidados dos serviçais;

3 -    no centro, como administrador geral, o síndico.

Até por ser mais racional, os proprietários cuidam do que está situado na parte superior, isto é, o relacionamento social entre condôminos, punindo aqueles que acaso tenham mostrado comportamento antissocial.  Seguem-se: o controle das finanças e suas destinações; a autorização de obras/reformas;  a eleição ou destituição do síndico, subsíndico e/ou dos membros do Conselho Fiscal.

Já ao síndico, principal cuidador da parte de baixo, além da superintendência geral do prédio caberia a administração do pessoal, acompanhando: o inter-relacionamento de cada empregado com seus colegas de trabalho e moradores do prédio; o cumprimento da escala de trabalho; a execução a contento das rotinas de serviço;  o conhecimento das normas internas do prédio; a manutenção da boa aparência...  Na qualidade de comandante da equipe de trabalho, o síndico ainda teria que manter atualizada e sob seu controle uma ficha de avaliação de desempenho de cada um dos seus comandados.
 

Lamentavelmente, não é bem o que está acontecendo nesta Casa.  Os funcionários se queixam de que há muitos chefes e as ordens que lhe são dadas muitas vezes são conflitantes, a ponto de provocarem desentendimento entre os que as determinam.  Que é do síndico?...

O síndico, uma vez eleito, tem dois caminhos a seguir:

1 -    ou ele atua no sentido de atender aos interesses de algum ou alguns moradores (quem sabe, de veia aristocrática ou de índole escravocrata), mais parecendo um capataz, feitor ou capitão do mato, do tipo que constrói um muro entre os que servem e os que são servidos;  eu diria, um síndico de papel;

2 -    ou, por outra, age imparcialmente como administrador de todos, um conciliador, um pacifista, um humanista (aquele que constrói pontes para aproximar servidos e servidores), impondo-se como chefe único de sua equipe de trabalho; um líder; um síndico autêntico.

Ainda bem que, avançando para a história universal, vemos que os Estados Unidos da América nos deram excelente exemplo.  Lá, no século XIX, os onze Estados do Sul, onde predominava a aristocracia artificial (baseada no latifúndio e na hereditariedade), impunham o desenvolvimento do país através da exploração de mão de obra barata (o trabalho escravo).  Enquanto isso, os treze Estados do Norte, mais próximos do Mississipe, preferiram o desenvolvimento industrial, com a participação, principalmente, da mão de obra imigrante.  Travou-se, pois, uma guerra civil (chamada Guerra de Secessão), entre 1861 e 1865.  Em plena guerra (1863), o presidente Abraham Lincoln promulga a Abolição da Escravatura em todos os Estados.  Decreta que os latifundiários INDENIZEM os seus escravos com TERRA, GADO E NUMERÁRIO.  E assim se fez.  No dia seguinte à Abolição, todos os escravos se tornaram cidadãos norte-americanos.

Apesar da "ku klux klan", organização segregacionista criada em 1866 para praticar terrorismo contra esses “cidadãos” negros, os Estados Unidos se tornaram uma potência mundial sob todos os aspectos.
...     ...     ...
Ufa!...      Sou um cidadão negro e acabo de ser eleito síndico deste Condomínio.  Que bom!  Estou convencido de que aqui não há adeptos daquela maldita organização terrorista.  Tenho absoluta certeza de que encontrarei, em cada um dos senhores que me elegeram, disposição para tornar o nosso Condomínio uma enorme potência em solidariedade humana.  Todo o resto virá por acréscimo.
Vamos à luta?..."                      João Pessoa (PB), 02/04/2017.
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Nota:  Continuaremos, breve.  Ao assumirmos, o melhor e mais antigo funcionário do Condomínio cumpria um Aviso Prévio.  O que fizemos? 
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Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 29/06/2017
Alterado em 01/07/2017


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