Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

SEO PEREIRA E DONA QUINA - Parte II


No dia seguinte, ouve-se um zum-zum na praça: – “um negro estragou a festa... Negro, quando não faz (...) na entrada, faz na saída”.

Como uma nuvem escura que se forma de repente anunciando o despejo de pesada chuva, o escândalo se espalha até pelos córregos do vilarejo. Mesmo os indivíduos de pele negra, de maneira preconceituosa e à boca miúda, encontram, no falar, no cantar, nas palavras torpes e no tom irascível e imperativo do “rei da embolada”, razão suficiente para palrear.

Uma mulher, também negra, ainda desconhecida pela comunidade, esteve, a noite inteira, debruçada na janela da casa da festa, ouvindo as emboladas.  Ao perceber os palavrões pronunciados em voz alta pelo embolador, adentra na sala, corre até ele e sufoca-o com demorados beijos, afetuosos abraços, ternos suspiros...  Significa, essa atitude, um escândalo para os dançantes, gesto vergonhoso para o resto dos habitantes. Assunto novo nas fofocas da pracinha.

Exceto para os embarcadiços, é imoral um casal dar provas de amor dessa forma, em público – seja lá como for!   Além do mais, um casal de negros!... – “Quem já se viu!?”... Coisas obscenas que nem as mulheres da vida fazem.  Aquela negra, desconhecida, passa a ser vista e repudiada como a mais reles das prostitutas. – “Deve morar na zona, isto sim!”. Dona Quina, sentenciada, nada sabe do que se comenta.

Manhã cedo, os dois, ainda aos beijos, ainda abraçados, saem da festa em direção à mercearia de seo Ernesto.  Um copo de pinga sobre o balcão.  Um corte no limão.  Torresmo recém-chegado da feira.  Lá pra mais tarde, a “saideira” e, de tira-gosto, mais um apimentado palavrão.

Sai o casal, a vagar, pro seu casebre na rua do Além-mar, perto da estrada de barro, final da rua da Aurora, começo do beco do João-de-barro.  Sol a pino.  Ele bêbedo.   Ambos cansados e mudos.  A areia quente das ruas não incomoda seus pés desnudos.

A caminho, veem-se mulheres aproveitando o sol quente para estripar o peixe e pô-lo a secar.  Mulheres salgando carne de baleia, trazida do “outro lado” por seus maridos, bem ali, além do rio-mar. Mulheres lavando, à mão, a roupa da família ou de ganho, estendendo-a sobre extensas cordas esticadas nos quintais, ou nas cercas de vara, espetadas, como as redes de pescar.  Mulheres preparando a comida em esfumaradas fogueiras, nos quintais, queimando a lenha que se traz à revelia, da ferrovia.   Mulheres que se amorenam e se energizam com a energia solar, para, à noite, se entregarem, às vezes por obrigação, aos seus maridos, nos quartos fechados, quando todos da casa dormirem.   Candeeiros apagados.

Dona Quina, pouco e pouco, começa a mostrar a que veio.  Enfermeira nas guerras – aposentada –, veio assistir a uma velha tia, acometida da incurável tuberculose, quase em coma.  Largada do marido (alcoólatra sem razão), dona Quina veio também desparecer um pouco, passeando na praia, sem uniforme branco, sem saia, despreocupada, relaxada, expondo ao sol sua pele queimada... De repente:

– ...ele se afogou; corre, traz uma vela! Já está morrendo, traz uma vela!... – Gritos dos pescadores, que costumam cumprir ritual antigo de acender uma vela e pô-la na mão do moribundo.

– ...uma vela! Traz acesa! Tem na venda de seo Ernesto!... – É esse o momento em que dona Quina conhece Seo Pereira: torto, quase morto... Ela afasta os curiosos que acercam o agonizante, se agacha, empurra sua cabeça imobilizada para trás e ministra o método da respiração artificial, boca a boca...  Repete e repete a operação, até que salva aquele homem de quem sequer sabe o nome, com abençoados beijos de reconciliação com a vida.

Ele pede pra morrer, ela o reanima.  Ele diz que nada tem, ela o ampara, leva-o para o casebre da tia, que também aceita seu sofrimento e sua agonia.  Ele pede cachaça pra se acalmar, ela dá.  Ele conta sua história, ela guarda na memória.    Acontecimento de arrepiar.

Abstêmia, nesse dia também tomou cachaça, para tudo olvidar.

Ele se pretende alcoólatra enquanto em vida – ela aceita resignada, comovida.

Com o tempo, ela se apaixona por suas poesias, sua dor, seu calor, sua história... Apaixona-se também pelo poeta, e não reclama quando, às vezes, ele faz rimas, dizendo que o “seu estoque de amor, faz tempo, já terminou”.   Contudo, precisam demais um do outro, quer dizer, precisam sobreviver.

Cabo de Areias não tem hospital, nem posto de saúde, pela sina de estar próxima da Capital.  Quando o farmacêutico – seo Marinoni - ou a parteira - dona Ester - não dão mais jeito, mandam o doente pra Neves, amiúde.   Incorpora-se a essa equipe de salvação, doravante, dona Quina que, pelo seu currículo, é mais confiável.  

Se necessário remover o doente, chama-se uma ambulância pelo telefone ou telégrafo da ferrovia.  E, para que a ambulância não afunde na areia, o doente já é levado, de rede ou em cadeira improvisada, de quatro braços masculinos, até o acostamento da rodovia.

Cabo de Areias também não tem contadores de histórias.  Dona Quina assume esse papel, conquistando a criançada, que se aninha em torno dela à noitinha, na calçada ou na areia fria da rua.  Apesar de, vez ou outra, dar-lhes purgantes amargos e alfinetar-lhes injeções, delicadamente, têm-na como segunda mãe.

Certa noite enluarada, dona Quina estava na metade de uma linda história quando, num repente:

Venham todos para dentro. Corram! Tranquem-se no quarto, rápido!...

Mas o que está acontecendo, mamãe?Um inocente pergunta...

Não me façam perguntas agora. Fiquem quietos!...

Lá vem Seo Pereira, de volta dos seus biscates no porto, ou na feira.  Ébrio, como sempre.  Dizendo impropérios e se maldizendo.  Palavrões e palavrões à solta, malditos, repreensíveis, irritáveis... Ao vê-lo no começo da rua, dona Quina se levanta, bate as areias da saia e corre ao seu encontro.  Abraça-o como se estivessem a sós. Tapa-lhe a boca com demorados beijos, da maneira como deveriam fazer todas as namoradas quando ouvissem as dores dos seus amores.  Tira-lhe a camisa suada e acaricia com os seios flácidos o peito cabeludo, molhado, desnudo do seu amado.  Quase uma hora de excitação e de exibição erótica repreensível, mas naturalmente de uma fluidez espontânea dos dois, como se a rua fosse deles, o mundo fosse deles, os coqueiros que lhes serviam de colchões verticais fossem deles...

A rua está deserta, com as crianças trancadas nos quartos dos pais, todavia - ainda se suspeita, na certa -, aqui e ali, de alguma janela semiaberta.  Não mais se ouve um único palavrão do feliz beberrão. Só suspiros e alguns ais de ingênua tesura.

Filhos guardados.  Quartos trancados.  As mulheres da vizinhança apagam os candeeiros da casa e, pra ninguém ver, ficam a contemplar, pelas frestas das paredes ou pela ligeira abertura das janelas, a ousadia daquela “vadia”.  Aí, se excitam, vidradas nos contatos voluptuosos dos dois vultos gulosos.  Com a possível aproximação dos maridos, reacendem prontamente as candeias, esbanjando expressões de moralidade:

Que sem-vergonheza!... Tamanha safadeza!... O que essa vagabunda inescrupulosa faz abertamente na rua, com tanta gulodice. agarrada com esse cachaceiro desgraçado, nem nos quartos de dormir, com as portas trancadas, sem ninguém ver, eu teria coragem de fazer!  Nunca vi tanto desrespeito!...  Mulher séria não tem essas necessidades...  Mulher devassa parece que tem o diabo nas entranhas... É mesmo uma sem-vergonha!...

- Que é das crianças?
– Pergunta um marido, sem dar importância.

Arre! Os meninos estão trancados no quarto. Não posso deixar que meus filhos aprendam essas baixezas... – Responde a mulher, morrendo de inveja de dona Quina...  Responde de novo..., dessa vez sussurrando..., com os lábios trêmulos..., beijando pela primeira vez o seu homem fora do seu quarto de dormir...

...e se abraçam, se esfregam e se entregam – ora com a brutalidade instintiva dos animais, ora com a leveza e a delicadeza do romantismo, ali mesmo, em cima da mesa, como dois comensais.

O vilarejo, dessa vez, soube compreender o quanto ganhou com a vinda desses dois novos moradores, revolucionários, reformadores...

Primeiro, uma admirável mulher, mestra, em tudo incomparável, que teve a coragem de mostrar que o amor é sangue, é oxigênio...  Guardado, coagula.  Escondido ou distanciado, empalidece, desanima, asfixia...

Depois, um também admirável poeta, que canta o amor nas emboladas do coco de rodaque, rimando de improviso, com gente nova ou gente antiga, faz de um caroço de milho uma enorme espiga;  que, no momento da precisão, diz palavrão no refrão;  que pelas coisas da vida tem um amor profundo, mas que é esquecido num segundo;  que nunca mais quer saber do mar, nem pra poetizar;  que, nalgumas vezes, mesmo ébrio, é um negro desejado, masculino, singular;  noutras vezes, cachaceiro inveterado, intriguista, intragável, insuportável.

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< A SEGUIR, PARTE III >

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Notas:
01 – este conto, completo, será inserido no romance “Amar a Dois Sobre Todas as   
         Coisas";
02 – "Seo" = forma sincopada de “Senhor”.
Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 12/03/2011
Alterado em 25/09/2011


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