Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

SEO PEREIRA E DONA QUINA - Parte III


A tia de dona Quina, de quem a comunidade se afastava por estar acometida de moléstia incurável e contagiosa, parou de sofrer, faz um mês.  Zefalante, seu vizinho, comenta o assunto na pracinha em tom de zombaria: – ...levaram a velha pra Neves, escarrando sangue, e lá mesmo ela ficou! Dona Quina logo, logo trocou as palhas da coberta da casa e, pelo jeito, ela vai permanecer por aqui!...  Também!...  Uma puta a mais, uma puta a menos, não faz diferença!”. 

Fred repudia esse modo de o “líder” do grupo se expressar, mas, pra não parecer diferente, termina acompanhando com um sorriso amarelo as gargalhadas dos que o cercam.  

 
O dia já está indo. Ouve-se uma voz rouca, masculina, ainda distante. . . 


É Seo Pereira, voltando da feira! grita Zefalante, esfregando as mãos.

 
– Fred, vou te mostrar um cinema, agora!  Vem comigo!  

Ora, em Cabo de Areias não tem cinema. Fred hesita.      

Vem, pirralho, deixa de ser trouxa! – insiste Zefalante.  Fred aceita com um pé atrás, porque está sempre esperando uma rasteira ou um belo trote do "amigo”.
Saem, apressados.


Escondendo-se de todos, como quem rouba, passam, calados e abaixados, pelo beco que separa a casa de Zefalante da casa de dona Quina.  Após o beco, uma cerca verde se estende até o fundo do quintal.

A voz distante de Seo Pereira se aproxima.


– Depressa! Pega esta tábua comigo.  Sobe na mangueira...  Segura numa ponta...,  eu seguro na outra, vai!...
  

Sobem seis metros, aproximadamente.  Ajustam a tábua sobre os galhos para assistirem o filme, sentados, relaxados...  

Atravessando o quintal, Seo Pereira chega em casa abraçado com dona Quina, que costuma ir ao seu encontro no começo da rua.   Uma rede branca já o espera, armada no terraço de palha  -  extensão aberta da cozinha.                    

Mas não é isso o que Fred observa.  Ele nunca vira sua cidade assim do alto, alumiada de candeeiros a querosene e vigiada pelo farol, com luzes intermitentes.  Quase tudo se pode ver. De um lado, o mar.  Do outro lado, o encontro sem-vergonha do rio caindo nos braços do mar. 

Vê os barcos ao longe, triângulos branquinhos a navegar, confundindo-se com as garças que, com seus olhares fulmíneos, estão ali também a pescar.  

Vê a locomotiva maria-fumaça, todo o tempo sujando o céu, de tanto esfumaçar.

Vê o coqueiral escondendo a pobreza do casario.  Quase nada dá pra ver mais à distância, porque o sol já se esconde entre os arbustos e os manguezais.                

Por perto, dá pra ver os quintais com muralhas verdes – chuchu, maracujá e outras trepadeiras – dividindo o terreiro dos casebres, que nada têm pra esconder.

Vê banheiros descobertos, construções improvisadas de palha de coqueiro, lá nos fundos dos quintais.  Até que se vislumbra algum corpo nu, em reconfortante banho de cuia! 

Fred agradece ao  “amigo” por lhe ter propiciado essa tão bela imagem do  vilarejo, a partir daquela sua torre verde camuflada.
 

– Que imagem? – Indagou Zefalante, mantendo fixo o olhar na rede de Seo Pereira.  

– Olha pr´ali !   O filme vai começar agora !   E aponta pro terraço vizinho, lado esquerdo.  

Seo Pereira já está deitado na rede.   Lá se vem dona Quina, passadas lentas, cabelo com aparência de molhado, e com as mesmas vestes desbotadas que Fred já conhece, mas que, naquele instante, dá-lhe o aspecto de uma bela ninfeta. 

Ela se deita e abraça Seo Pereira do mesmo jeito terno e feminil que faz na rua, sugando com beijos sua embriaguez...
       
As extremidades  da rede, branca e larga, cobrem depois os dois corpos, justapostos.
      
Nada mais se vê, salvo o estremecimento ondeado da rede, como um redemoinho provocado pela arfante inquietude dos dois ocupantes.


– Zefalante, daqui não estou vendo mais nada!  Só o pixaim de dona Quina.  Vamos descer... – Cochichou Fred.

– Nada disso!   Pelo menos dá pra ver que está um engolindo o outro dentro da rede! – Disse o “amigo”, também em surdina.

Interrompem os cochichos. Como as garças, começam a pescar com seus olhares fulmíneos.  Dona Quina levanta o busto com as mãos apoiadas nos ombros do parceiro.  Arfando em cadência, como a ramaria balouçante da mangueira, sua seminudez sobressai.  O resto do corpo, recoberto pela extensão da rede, transmite a imagem de uma sereia negra de cauda branca.     Não se a vê toda nua, mas ela exibe, deliciosamente, os seios cansados, trêmulos, tontos, alcoolizados pela língua branda do companheiro.  Decisivamente, momento não propício a palavrões.

– Que sem-vergonhice é essa, Zefalante!   Abotoa essa braguilha!  Não sabe que isso é pecado?!... – Indigna-se Fred ao ver o seu convidador em prática de autoerotismo.

– Que pecado, que nada, seo idiota!  Isto é coisa de homem!   É só pensar na melhor mulher que você conhece e imaginar que ela está com você, sacaneando!  Já fiz isso com quase todas as mulheres do vilarejo..., até com a tua mãe!... – Rebate Zefalante, provocativo. 

Fred não se contém diante da provocação do seu novel “inimigo”.  Esquece de que o desequilíbrio da tábua os iguala em risco.   Esquece de que o seu rival é quase quatro anos mais velho, mais pesado, musculoso e mais raivoso. Parte pra cima dele, cegamente, como um animal ferido, ou como um suicida.  Nem o alcança.

Rolam os dois, com a tábua, até as areias fofas do chão – linha resultante de duas forças diferentes em desequilíbrio.  

Zefalante fraturou o punho direito. Seu grito de dor fez acorrer todo o pessoal de sua casa e das casas vizinhas.

– O que foi isso?... Como foi isso, Zefalante?... – pergunta a  mãe desesperada.

– É que Fred estava roubando mangas.  Aí eu...

– Largue de mentira! – censurou a mãe – Você sabe que não estamos na safra de manga...   -  Ih!... O caso aqui foi sério.  Chamem dona Quina.  Dona Quinaaa!...

Enquanto isso, na casa de Fred:

– Ai, meu Deus, meu filhinho vai morrer!  Ele já está todo roxo!    Valha-me,  Nossa Senhora!    Depressa, tragam arnica, tragam sebo de carneiro, vinagre, jurubeba!... – Suplica dona Iole  – Se não tiver arnica nem jurubeba, vai na mercearia de seo Ernesto. Diz pra ele botar na conta...  Corram, corram, que o meu filho está morrendo!...

É quando chegam, no momento mais angustiante, dona Quina e sua sina. 


– Primeiro, gente, vamos parar de choramingos e pôr a cabeça no lugar – Pediu dona Quina em tom de superioridade.   Tira toda a roupa suja e rasgada de Fred e lhe prepara um banho. Retira a areia encontrada na boca, na garganta e nas narinas do seu paciente, que respira com muita dificuldade. 

– Quantos anos ele tem?  - Pergunta dona Quina.

– Tem dez anos. Vai completar no mês que vem.  E a senhora já está convidada pra vir comer um pedaço de bolo!... – Responde dona Iole, esperançosa. 

Após o banho, com Fred nos braços, embrulhado num lençol remendado (não tem toalha), dona Quina pede para colocá-lo numa cama (não tem cama).  Coloca-o numa rede, na sala. 

Zefalante, com a mão numa tipoia e o punho amarrado, a tudo assiste, sorridente, como se nada tivesse acontecido.  Dona Quina ausculta novamente o seu paciente.   O quadro febril não diminui.  A respiração continua difícil.   Não há outra alternativa.  Apela para a respiração boca a boca. 


Dona Iole, por trás da rede, segura o filho pelas costas. Dona Elisa, vizinha de dona Iole, grávida, pelo outro lado da rede, segura o único candeeiro da casa. 

Dona Quina começa a pressionar o peito de Fred.  Com as mãos espalmadas no seu tórax, quase nos ombros, encosta seus grossos lábios na boca miúda do paciente.  Sopra para os seus pulmões mirins um ar etílico incomum, perfumado com o hálito recém-colhido de Seo Pereira.   Ritmo constante e cadenciado.  Depois de algumas intervenções, Fred começa a dar sinal de melhora. Reação lenta. Corpo já todo descoberto.

Fred está consciente, todavia embriagado (dona Quina transferiu pra ele a embriaguez de Seo Pereira).    Aí, acha que está sonhando.  Imagina-se adulto.    Conjetura atitudes maliciosas.  Sente as mãos dela em seus ombros. Sente os seios dela roçarem o seu peito descabelado de criança.  Acorda... Desmaia...   Sonha...   A partir daí, ela é a mulher do seu sonho. 

Sonha que é dono do mundo, porque é dono de uma mulher. 

Sonha morando com ela entre as folhagens da mangueira, no esconderijo de Zefalante. 

Sonha absorvendo o calor de uma fêmea que se esquenta em seu corpo, que se esfrega, que se entrega...  


Dona Elisa, que está com o candeeiro na mão, bem do lado da rede, assusta-se com a postura viril de Fred (que dorme e está com o falo turgente).  Pôs o candeeiro no prego da parede e tapou a boca com os dedos indicador e médio da mão esquerda, escandalizada, olhos arregalados.  Faz um gesto rápido para dona Iole – e saem as duas.   Na rua, após alguns sussurros feminis, disparam incontidas gargalhadas.

Zefalante, não pode subir até a torre camuflada, mas tudo vê e tudo ouve.   
 
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SEGUEM:  partes IV e V

Este conto estará inserido no romance
"Amar a DOIS Sobre Todas as Coisas"

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Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 13/03/2011
Alterado em 25/09/2011


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