Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos




SEO PEREIRA E DONA QUINA – Parte IV
 
Bem no início da noite, Seo Pereira dá uma paradinha na calçada da casa vizinha à de Reginaldoviana, de frente à praça.   É hora de aumentar o volume do rádio.  Poucos o têm no vilarejo.  A vizinhança quer escutar a prosa poética do poeta declamador Bastos de Andrade, que tem um programa na PRI-4, todos os dias, logo depois que o sol se põe: “Mensagem para o rancho”.    
 
Qual foi o assunto de ontem? – perguntam interessados os que, por motivo de trabalho ou alguma outra razão, deixaram de ouvir o melhor programa da noite.  


Bastos de Andrade espalha suas mensagens com a mesma devoção com que os semeadores despalham o milho para o plantio.  Prepara a terra e sabe  a  importância  e  o  tempo  adequado  do  semear.   Desafio.
Conforma-se com a incerteza  da  colheita.  Insistente replantio.   Seus discípulos, coletores dos frutos que ele plantou, agradecem as lições, os cuidados recebidos, e garantem a perenidade do desafio e do sacrifício do replantio. 

Sua índole diz que é um abnegado homem do campo.  Nasceu na cidade de Itabaiana, perto da escola onde José Lins do Rego aprendeu as primeiras letras. 

Criado em contato com a gente das terras de engenho, compreende-se a causa do seu sofrer e a mansidão do seu falar.  Declama   poesias.   Conta   causos...    Sofre, a revezes, os infortúnios de algum acontecimento clamoroso na região, repassando-o com palavras amenas para um público fiel, que já se acostumou com o seu jeito manso de dizer as coisas.

Comenta uma ocorrência até onde seu coração suporta e a emissora alcança.  Aborda casos outros até de repercussão nacional, quando é necessário esclarecer e esmiuçar o assunto com brandura.  Inclui também em seus recados – e por que não? – temas relacionados com os graves problemas sociais da região. 

 Tudo feito à base do improviso.  Tudo arranjado artisticamente dentro de uma métrica que mais parece a consonância perfeita de notas e intervalos de uma composição musical.  Rimas alternadas, rimas cruzadas, rimas pobres, rimas ricas, rimas de coisas que o povo gosta de ouvir.  

Um poeta contador de causos, no campo. 

Um poeta declamador, na cidade.

Poeta, em qualquer lugar onde esteja.

É referência para os outros poetas, seus contemporâneos, em especial Zé da Luz, o poeta seu irmão.  Novos poetas de valor hão de exsurgir desses rincões nas próximas gerações, com outro refinamento e diferentes ouvintes, todavia, sem se desguiarem das diretrizes traçadas por esse poeta maior que faz escola.  Hão de nascer e renascer, sim, poetas agraciados com as bênçãos desse artífice das rimas, que em tudo faz despontar o sentimento do bem e do belo – poeta e profeta beatificado, Bastos de Andrade. 

Os declamadores dos pastoris, dos cocos de roda, das naus catarinetas e dos grupos de amigos de Cabo de Areias, rendem-lhe mil homenagens e escrevem à mão, nas areias de suas belas praias, que a sua passagem na Terra – como um barco que desponta na linha do horizonte e logo retorna – é considerada, por toda a comunidade, um relevante lapso de sua bem-aventurada eternidade. 

 
Mauroananias é um desses rimadores e discípulos agradecidos.  Assíduo ouvinte, pose de atleta, uma perna no chão, outra segurando a bicicleta, ouve atentamente Bastos de Andrade, o poeta notável e inimitável.  Mauro também tem o dom de bem poetizar, tanto que, nas ocasiões festivas, seus pares sempre lhe pedem discursos ou as mais belas histórias - rimados.  


Terminado o programa, o bate-papo se estende ao longo da noite. Reginaldoviana fala de futebol, que é também o seu xodó.  Rádio desligado para economizar energia.  Seo Pereira parece ter mudado de humor por somente um quarto de hora, tempo exato da duração do programa. Jeito de quem está confabulando com o poeta declamador – seu ídolo e mestre –, levanta-se e sai, descalço, caminhando a vagar, aqui, ali, cambaleando e resmungando.  Sai, como sempre saiu, sem se despedir.  

Memória infalível, começa a cantar pela rua tudo o que assimilou do programa de seu poeta preferido.  Mesma simplicidade, mesma  desenvoltura, mesma métrica, mesmas rimas.  A embriaguez parece não lhe amolecer o cérebro.  Fred o acompanha, um pouco à distância, conferindo, admirado, a facilidade com que Seo Pereira retém na memória as mensagens que acabara de receber de Bastos de Andrade.  

Poucos alcançam esse dom divinal – próprio de um gênio, ou sábio.  Poucos observam, sim, porque, ao contrário de dona Quina, ele é desacreditado por muita gente do vilarejo.   Certamente, por já se esperar, dele, alguma inominável afronta.  É que, após citar seus belos versos e demonstrar a extraordinária façanha intelectual de decorar e declamar tudo o que ouve do seu poeta maior, seguem-se repetidas lamúrias e vis palavrões.  Estar bem, nunca lhe faz bem. – “Por que razão?!...” – Fred se questiona.


Dona Elisa e Zefalante, que não ouviram o programa, cavaqueiam, ainda lá na praça, algum assunto interessante.  Histórias inventadas ou mal contadas.  Fred fica inconformado quando os vê juntos, confabulando e disparando impetuosas gargalhadas.  E, quando Zefalante esfrega as mãos, sabe que algo de podre está se tramando.  Acautela-se.

Porque ficava quieto, sentado na calçada vizinha, distanciado dos outros ouvintes, e sempre saía sem se despedir, ninguém percebe a ausência de Seo Pereira no “Mensagens para o rancho” dos dias seguintes.   Fred percebe, sim.  Ausência que o deixa  inconformado.  Sai em busca do seu poeta, artista e repentista mor. 

Encontra Seo Pereira embriagando-se também de desilusão e tristeza.  Mistura o ânimo da cachaça com o desânimo de alguma nova desgraça inventada.   Para cada trago na garganta – sem emoção, sem precisão –, um nó e um estrago no coração.  Cada vez mais a vida se lhe torna sem sentido.  Intensos palavrões – insultuosos, ultrajantes – desta vez, difamantes.

A admirável companheira de repente é transformada em sua grande vítima.  Desinteressado de tudo, não mais se deita com ela na rede.  Prefere dormir ao relento, na umidade noturna das areias da rua.

Já se o vê em declinante frouxidão orgânica e moral.  Pouco se ouve do seu cantarolar nos cocos de roda.   Apenas  ritmados resmungos.

Insensatas divagações de um poeta
bêbedo que se imagina apunhalado pelas costas.   É que o sopro do mal lhe chegou aos ouvidos.     Teme as chacotas ou injúrias nas cantigas improvisadas pelos amigos.

Insano desejo de solidão.

Neutraliza seu sofrimento, deixando-se inebriar pela ação sedativa das batidas de limão ou,  de maracujá,  acocorado em volta do zabumba ensurdecedor.  Batidas que parecem também aliviar-lhe a dor.

Em insuportáveis, enjoativas e enfadonhas lenga-lengas, deixa que se entre-escute a rezinga de sua novel mágoa:      


“...se ela mordeu minha alma,
nem se importa!
Uma cascavel fulmínea
provando a força do veneno,
mesmo morta.
Veneno que nunca termina”.


"Uma puta, que a gente acasala,
é igual.  Debalde querer matá-la”.


“...gesto de inconcebível desatino.
 Se fantasia de bem-aventurada,   
de santa, amada,
bem comportada,
e, na rede, me trai com um menino
”.

- “Mas, peraí, bando de
abestalhados,
quem falou em traição?

- Puta não trai, não!
Só cumpre sua safada obrigação!
”...


Todos riem diante da ébria colocação do poeta. 

Dona Quina não se importa.  Resignada, diante da ingenuidade alcoolizada do pobre companheiro, não acredita que o povo possa tolerar tamanha asneira.  Confia no tempo, que tudo esclarece, e na providência divina.   Ilude-se com a possibilidade de ainda vir a ser a musa inspiradora de Seo Pereira – o seu poeta Pereira.

Quem não conhece, no vilarejo, a velha enfermeira que salvou a vida de Fred?!...  Há até mesmo quem tenha inveja de sua honradez!   Mas, afinal, quem desfigurou a atitude nobre daquela guardiã da saúde na comunidade?

Dona Elisa? 

Zefalante – o sabe tudo, que, de déu em déu, busca notícias para comentar ao seu bel-prazer?

O fato é que, apesar de repetidas explicações, muita gente do vilarejo ainda vê imoralidade na intervenção de dona Quina com a respiração artificial boca a boca.


– “Com tanta arnica, com tanto sebo de carneiro..., havia outra forma de salvar a vida de Fred, no dia em que ele caiu da mangueira!  Salvou a vida do menino com base na safadeza!” – comentam.   

Dona Elisa e Zefalante se incumbem de soprar esse fogo de repugnante monturo.


De cheio de genebra e saúde, indolente e sem maldade,
a bêbedo sensível e doente,
traído pela boca má da cidade

       

Dona Quina cuida bem do paciente que Deus lhe deu. Compra medicamentos na farmácia de seo Marinoni.  Ele os prescreve,  intuitivamente.  Não há médico na cidade.

Quando falta dinheiro pra remédio, os que podem se cotizam, solidários.  

Seo Pereira não aceita remoção para Neves, nem medicação oral ou injetável.  


Dona Quina, a todo custo, numa tarde, está a lhe aplicar uma intramuscular.  Na zina do horror por medicamento, Seo Pereira arrebata a seringa, ainda com líquido pela metade, e a enterra com fúria na barriga da companheira, desmaiando em seguida.   

Mesmo atingida, ela ainda tenta reanimá-lo.  Aí, desfalece também, caindo drogada e dobrada sobre o corpo do seu paciente, ou amante, ou agressor impenitente. 

Acabam de tomar, juntos, um tranquilizante forte, de efeito imediato e prolongado.  Os dois cinquentões dormem, abraçados, o resto da tarde e a noite inteira.  Só a seringa os separa.  Nem a batida do zabumba no coco de roda da casa vizinha os desperta. 


Suados, colados,
calados e acasalados.
Surdos pros festejos da casa ao lado.


Faz dias, dona Quina cuida, com afinco, do seu companheiro, que já está sem forças. Ele se levanta com dificuldade ao apito da oficina de trens, como de hábito.  Apenas belisca o cuscuz preparado com carinho.

Passadas trôpegas, retorna à rede com ajuda. Sem ânimo, contorce-se pelas dores intermitentes que o atormentam a cada dia.  Até que, nos gritos de dor, chama a atenção da vizinhança.


Acaba o efeito de mais um tranquilizante.   Dona Quina precisa voltar à farmácia.  Não pode deixar Seo Pereira sozinho.

Chama Fred, que chama sua mãe, dona Iole, que chama dona Elisa, que  chama Zefalante, que chama outros vizinhos, menos ocupados e mais curiosos.   Até parece que todos pedem um milagre para salvar o poeta, que arqueja, moribundo.


Na farmácia, dona Quina não encontra o medicamento pretendido.  Lê a bula de algum outro que seo Marinoni prescreve.  Não há sucedâneo.  Desespera-se.   Precisa de carona, em caminhão de cargas, para tentar levar Seo Pereira até o hospital, em Neves, ou ir até lá em busca do medicamento.  Arranja mais dinheiro, mas...

       "dinheiro não tem valia,
             quando o tempo,
                    sumindo,
        só aumenta sua agonia".
  

Chamar uma ambulância pode já ser tarde demais.  Ambulâncias, em Cabo de Areias, sempre chegam, também, tarde demais... 

Enquanto isso, em sua casa:


Apelos para que ela chegue com a rapidez que prometeu.  Seo Pereira está nas últimas!   Dona Elisa – previdente – sempre leva uma vela escondida quando vai visitar um doente.  Tem-na no bolso do avental.  Percebe que é chegada a hora de acendê-la nas mãos do agonizante...

E o faz.

Casa cheia. Todos rezam, em murmuração, o Pai Nosso e a Ave Maria – “...agora e na hora de nossa morte...” –, repetidas vezes, como num fervoroso responsório.


De repente, queimado pelas substâncias gordurosas derretidas no dorso das mãos postas:

– “Tirem essa merda daqui!!!...” – grita Seo Pereira, segurando a vela com indignação e furor, com  a mesma  incivilidade  com  que,  há poucos dias,  enterrara  a  seringa  na  barriga  da  companheira.

 –  “...isso não serve pra nada!  Vocês acham pouco, é?!... Já me mataram na rua e agora vêm me matar dentro da minha casa?!... – berra Seo Pereira, já se levantando da rede com muito esforço.  

Passo vacilante, como de embriagado, caminhou até a porta da sala  – metade de cima aberta, a outra metade fechada –  e, somente com a força da ira, atira no meio da rua a vela branca, ainda acesa.


De dentro da casa, uns correm, gritando pela rua: – “O defunto se levantou!”...  Outros se recostam à parede, assustados com os gritos agoniados do ressuscitado. 

A filha de dona Elisa, de colo, atemorizada, protege-se no pescoço da mãe e agora grita, assustada com os gritos rocos de seo Pereira:


– “Vocês não têm o que fazer em suas casas, não?!... seus vadios, suas quengas!  Raio que os parta!  Gotas serenas!  Diabo que os carregue!  Vão todos pros quintos dos infernos!  Gangrenados!   Estuporados!  Bando de urubu esfomeado!”... 

Dezenas de palavrões insultuosos e maus-tratos ainda se ouviram.   

Seo Pereira, cansado de ralhar, busca um pouco do ar que já lhe falta. 

Aí, sem praguejar, cabeça inclinada para a esquerda, pálpebras cansadas, olhar fixo para baixo como a querer sentir os próprios pés, volta para a velha rede.  Deita-se devagarzinho, sem ajuda.  Faz um gesto rápido para o alto, com a mão espalmada e trêmula, como a pedir a vela de volta – ou rogar perdão pelas muitas ofensas...


E... de olhos arregalados, comprimindo a musculatura da face – respiração oral difícil e de ruído cavernoso –, distende o corpo trêmulo ao comprido, buscando entrelaçar-se inquieto nos fios tensos da rede.

Pouco e pouco, fraqueja, fraqueja...


Para, num repente.

Silêncio monástico...

Seo Pereira não mais agoniza.   Parou de sofrer e de viver.  Parou de gemer e de beber.  Parou de dizer estridentes palavrões e de cantar coisas bonitas, baixinho, desafinado...  Foi assim que viveu em Cabo de Areias.    Foi assim que morreu.  Morreu a poesia simples e improvisada das cantorias nos cocos de roda.  Deus recebe de volta o dom divino que lho havia emprestado.


Todos percebem que ele está sem vida, mas, a princípio, não ousam aproximar-se da rede temendo outra esbravejada ressurreição. 

Os vivos, mesmo os mais fortes, se tornam frágeis diante da morte, em razão dos seus medos, crendices e tolas superstições.  Fred, o primeiro a lastimar, estampa nos olhos saudade e lágrimas pela perda do seu insuperável ídolo.

Chega dona Quina com algum medicamento, esperançosa e com expressão animada:  

–– Pereira, mesmo distante, eu vi você!  Eu vi, há pouco instante, quando você passou pela janela!  Eu vi!   Você passou, Pereira!  Você passou!  Você passou!... – diz, abraçando o corpo do seu amado, inerte, sem perceber o semblante compungitivo dos curiosos escorados às paredes da sala.     Sua retina guarda a imagem do companheiro  passeando dentro da casa.   E continua sussurrando, em delicado pranto: – Você passou, Pereira! ...pro Céu! ...pros seus!


A cidade para, no dia seguinte, para o sepultamento.

Cumplicidade.

Os coautores da agonia e morte do poeta, com esse gesto de adeus e de penitência, expiam o pecado cometido, pedindo perdão pelas ofensas, pela injúria, pela calúnia levantada e espalhada, pela rede de intrigas inventadas, pelo julgamento infundado.


Seo Pereira afunda na sepultura em sua própria rede.   A rede das refegas, em que tanto, nalgumas vezes, esbraveceu e, tonto, amou e sonhou.

 
Rede branca,
de malhas, 
de casal,
de balançar suave em busca de ar, 
de a insônia afastar,
de sufocar um mal que se espalha,
de escutar gemidos
de amor ou
de dor,
embala, agora, o sono eterno do
seu poeta,
a
quem tanto balançou
e se curvou.
 
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A SEGUIR - Parte V  (final)


Este conto será inserido no romance
"Amar a DOIS Sobre Todas as Coisas"

Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 27/03/2011
Alterado em 27/07/2011


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