Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

PRIMEIRO DE ABRIL – DEVERIA SER FERIADO!
 

Hoje pela manhã – dois de abril –, caminhando à beira-mar, encontro um velho amigo um pouco tristonho. Tantas vezes o vira alegre, feliz e até cantarolando coisas antigas com sua esposa, dona Dadá, companheira de caminhada... Tantas, que resolvi me deter um pouco e tentar elevar o seu astral.

- Oi, Jorge! Estou vendo você meio cabisbaixo!
O que é que está acontecendo, meu caro?


Ele não me dá ouvidos.  Permanece calado.  

 Como vai dona Dadá? Ela nunca perde uma manhã bonita como esta! Por que ela não veio? – Pergunto, acompanhando suas passadas, mais lentas que dantes.


- É!... Não posso esconder.  Vou lhe contar o que aconteceu, porque, afinal, somos amigos... 
Depois de velho, meu caro, caí numa verdadeira armadilha do Primeiro de Abril. 
Quanto à Dadá, ela está bem!... Mas, por conta do ocorrido, só não está de bem comigo!


E me contou toda a história, mas pedindo o maior segredo do mundo. Contudo, pra não ser tão secreta quanto ele quer – e porque todos os meus amigos sabem que não sou de guardar segredo –, vou recontá-la tendo o cuidado de utilizar alguns nomes fictícios.



                                *******

Jorge é um sexagenário enxuto, esbelto, elegante, cabeleira solta, encanecida, musculatura razoável para um homem de setenta e cinco quilos e um metro e oitenta de altura, aproximadamente. 
Amigo e colega meu, bancário, aposentado.
Mulherengo.
Sua esposa, uma linda mulher, seios aprumados, para uma bem conservada quinquagenária que pesa dez quilos menos que ele.   Esbelta e igualmente enxuta.
Um casal de filhos, ambos casados, e um casal de netos.
Viviam e curtiam muito bem seus quase trinta anos de vida em comum. Família, indubitavelmente, muito bem estruturada.


As circunstâncias ensinam-no a mexer no computador.  E não adianta mexer no computador sem utilizar a Internet.  Aprende, então, a navegar como um internauta.
 
Beleza de interação! Informação imediata de tudo o que acontece no mundo lá fora. Até compras faz sem precisar levantar-se da cadeira.

Pagamentos, transferências bancárias, tudo diferente do seu tempo, tudo obtido ali, a qualquer hora, sem aquela rigidez antiga de horário do expediente para o público...  

De tanto ficar sentado e com o privilégio de tudo alcançar sem o menor esforço físico, não fossem as caminhadas na praia pela manhã  já teria engordado uns dez quilos a mais, ou mais...


Aí, ele descobre, na Internet, um sistema de busca denominado:

Encontre o Amor de Sua Vida”. 

Cadastra-se. 

Ali mesmo, autoriza a debitar em seu cartão de crédito as mensalidades exigidas.

Acessa o sistema. 

Fotos e mais fotos de lindas mulheres da faixa etária que ele mais prefere – entre quarenta e cinquenta anos. Lê os perfis das candidatas.   A maioria de nível universitário, embora uma delas tenha escrito:

“...Cinto vc me acariÇiando...”. 

Procura. Procura muito, a criatura do seu sonho naquele universo de mulheres à sua disposição. 

Às vezes, lhe chega à mente um provérbio chinês que o adverte:

Procurarás, procurarás, e com um ganso casarás”. 
 
Insiste mais, até que encontra a foto de uma garota espantosamente indescritível.   Está ali, à sua frente, a mulher que lhe vai fazer mais homem e muito mais feliz.

Queixa-se ele de que Dadá joga fora todo seu encanto: veste-se mal; despreocupa-se da arrumação da casa; resmungona, reclama de tudo; culpa o marido por qualquer coisa errada dentro de casa; discute por qualquer tolice e nunca está disponível para o parceiro.  Enfim, segundo a perspectiva troncha de Jorge, ela se sente envelhecida e precisa - e até quer - ficar só. 

Jorge tenta largá-la, mas, como qualquer homem precavido, não se larga uma mulher assim não!...  Pra ir à caça de outra depois?...  Não!
Nada disso!

Primeiro ele põe um pé fora de casa e caça uma outra.  Quando a convivência estiver dando certo com essa outra, aí é que ele retira o outro pé de dentro de casa.  Pronto!  É assim que vai fazer.

A Valentina já está ali à sua espera, linda,  sorridente, colorida, na tela do computador.  

Cria coragem, prepara uma mensagem convincente e – pimba! – clica no campo “RESPONDER”.


Não deu outra. A loira Valentina diz “ACEITO” – e o bate-papo começa pra valer.

Combinam ficar dialogando nos seus próprios e-mails.

Valentina, coitadinha, fala dos seus quarenta e um anos (!) de luta pra sobreviver. Casou com vinte anos. Tenra idade. Tem uma filha de dezoito.  Enviuvou com três anos de casada.  Defende-se o quanto pode das cantadas maledicentes.

Tem necessidade urgente de conviver com um homem, homem, que a faça feliz.
 
- “É Deus quem me manda você, Jorge, nesta fase mais angustiante da minha vida” – diz Valentina, chorosa. 

Jorge responde os e-mails confirmando sua virilidade, sua paixão por ela, e o desejo imenso de abraçá-la e protegê-la.  

Fotos e fotos são trocadas, poemas de amor às dezenas.   Fazem planos, mas precisam conhecer-se  pessoalmente.

Muito fácil, porque estão em cidades relativamente próximas. 

Aí, depois de um mês de carícias via “on-line”, resolvem encontrar-se para decidirem o rumo que devem seguir.

Jorge fica ansioso.     O coração quase passando pela garganta. 

Tem que preparar-se, física e emocionalmente, para receber a sua amada, Valentina. 
Dadá que se lixe!...


Encontro marcado para a sexta-feira, primeiro de abril, às dezesseis horas, no Shopping Lindoia. 

Assistirão ao filme “Casamento de Mentirinha”. 

No escurinho do cinema, os sussurros de amor ficarão mais que deliciosos. 
Meu amigo lambe os beiços.  

Pela manhã, Jorge corre até uma loja de confecções finas e compra um traje esporte jovial e elegante.  Já o veste.  Aproveita e compra um presentezinho pro seu futuro amor. 

Nem almoça, porque o tempo encurta.   À noite, com certeza, jantará com ela.  Tudo armado. Tudo combinado.  

Largado o computador em casa, passam a se comunicar via celular - até que ocorra a almejada junção dos dois polos.


Jorge, primeiro a chegar, fica em frente ao  cinema, no local combinado.   Há cadeiras disponíveis, da lanchonete ao lado, mas prefere esperar a Valentina de pé, com altivez.

Tenta a primeira ligação pelo celular e ela não responde.  Outras e outras ligações sem qualquer sinal de resposta.
 
O filme prestes a começar e ela, nada.
Sabe que não é trote.  Valentina não é de passar trote em ninguém!... 

Para acalmar-se, caminha a passos lentos no espaço entre a lanchonete e a bilheteria do cinema.
 
Incomodado - claro! - com a demora de Valentina e, principalmente, com a ausência de comunicação via telefônica, muda repentinamente de humor quando vê, frente à lanchonete, sentada e desacompanhada, uma jovem senhora, muito bonita, que, não por acaso, também o olha de soslaio.

- É ela!?!?!?...

A dúvida vem, mas depois que ele olha, detidamente, uma das fotos que traz no bolso, a dúvida se vai de vez.

- É ela.

Pede permissão e senta-se na cadeira bem de frente à sua princesa (!).


Você me desculpa a pergunta, mas seu nome é Valentina, não?!... ­ –  Encarou-a, corajosamente, o meu amigo, somente agora percebendo que a pessoa abordada tem olhos azuis, característica que ele não havia identificado nas fotos da sua Valentina.  Julgou, entretanto, ser esse um detalhe irrelevante.

Não,  senhor,  eu me chamo Karízia.    Vejo que está, já há algum tempo, procurando um lugar pra se sentar.  Pois, pode ficar sentado aí à vontade.   Se o senhor não se incomodar e quiser, ficaremos conversando por uns quarenta minutos ainda, até iniciar a sessão das dezessete horas no Box 3. – Responde Karízia, parecendo demonstrar algum interesse pelo Jorge ou amparando-se nele pra não ficar ali sozinha, sujeita a olhares indiscretos, por conta de sua beleza ímpar.
É muito convencida, a Karízia! 

Nesse instante, sem que os dois percebam, senta-se na mesa ao lado uma senhora,  durázia, de um pouco mais de oitenta anos, que fica entreouvindo a conversa dos dois.


Valentina, acho melhor você parar de brincar comigo, por favor!  Lembre-se de que você me mandou uma foto.  Eu imprimi e a trouxe para dirimir qualquer dúvida.  Está aqui.  Veja  a  cópia. Considero-a  perfeita.  Sua  imagem  fiel!...
Agora, se você acha que eu não sou o seu tipo, fique à vontade.  Diga logo que não interessa mais relacionar-se comigo, e pronto!   Nada se decidiu ainda entre nós, não é verdade? 
Acaba tudo aqui mesmo, numa boa!
 – Suplicou Jorge.  


Fatalmente iracunda, Karízia replica o meu amigo, desqualificando a pessoa da foto que ele lhe passara:

Olha, meu senhor, eu estava até pensando em lhe convidar pra ver o filme comigo, sabe!?... Mas o senhor é míope. O senhor entende muito pouco de mulher bonita. 
Será que não está vendo alguma beleza em mim, pra me comparar com esta vaca, esta tinhosa, esta coisa repugnante que mais parece uma prostituta
...  
e que diabo de nome é esse que o senhor me arranja?...  Preferia morrer do que ter um nome nojento desse:  Va-len-ti-na !!!... – Rebate Karizia, agastada.


Nesse momento,  a senhora durázia octogenária se levanta e, com a alça da bolsa, dá umas chicotadas no rosto de Karízia, que não entende porque está apanhando e grita, pedindo socorro aos passeantes. 

Jorge tenta segurar, firmemente, a bolsa da agressora, que também grita chamando a polícia:

- Seu senvergonha!  Solte minha bolsa!...


Ouvem-se mais ruídos e alaridos, num alvoroço nunca dantes visto no Shopping Lindoia. 

Karízia escapa do chicote da vovó, foge e ninguém mais a vê.  

A polícia chega num repente. Para fazer cessar o burburinho, não quer ouvir explicações do Jorge - pego no flagrante com a bolsa na mão -,  tampouco da vovó.     Leva os dois, algemados, até a Delegacia da Mulher. 


                            ************

Lá, a própria delegada digita os dados pessoais de Jorge, que a tudo responde com veracidade.
Em seguida, vai preencher os dados da vovó.


Qual o seu nome e sua idade, senhora? – Pergunta a delegada, de maneira carinhosa.

Meu nome é VALENTINA dos Anjos. Tenho 82 anos... – Responde bem alto a senhora durázia.

Ouvindo o inesperado, e sentindo-se culpado pela surra que levara a pobre Karízia, JORGE, coração fraco... DESMAIA.
                                 
                                *****

Uma hora depois, medicado e já refeito, o meu amigo é liberado, não antes de ouvir o seu enquadramento na Lei, baseado no Boletim de Ocorrência preenchido pelos policiais e endossado por Valentina, já liberada:


“TENTATIVA DE ROUBO E AGRESSÃO FÍSICA A MULHER IDOSA INDEFESA”.

A delegada acrescentou que esse tipo de enquadramento implica seis meses de prisão, todavia, por se tratar de réu primário, o Juiz, com certeza, converterá a pena em serviços prestados à comunidade. 

Jorge, sem testemunhas, ouve tudo e é liberado.

                               
                                  **********

Volta para o Shoppin extremamente envergonhado.  Por sua causa, a Karízia perdeu o filme e ainda foi humilhada por sua...  sua ex-namorada...
Ainda terá que cumprir pena judicial escondido, sem que a sua Dadá tome conhecimento. 

É quando começa a passar em sua mente uma fita magnética lembrando as pequenas rusgas (administráveis) com a sua Dadá, tão solícita, tão meiga, tão digna, tão dinâmica, tão doce, tão... e que ele esteve prestes a abandoná-la por uma mentira, por uma beleza que não existe, nem existia.


Arrependido, busca um meio de tudo contornar.

Entra na mais chique das lojas de confecções finas e escolhe, para a sua Dadá, a mais bonita e mais cara blusa que a casa oferece. 

A sua Dadá merece muito mais do que a loja inteira.
 
Reconciliar-se-á com ela. A demora é só chegar em casa. Parte, apressado.


                            ****************

Em casa, dona Dadá pede ajuda à filha para acessar o e-mail do marido.   Suspeita de ele estar tramando alguma coisa, ficando até tarde no computador e só na Internet.   

Precisa saber a senha. Da primeira tentativa sua intuição acerta. Deduziu que, se Jorge anda meio mal de memória, esquecendo algumas coisas, então ele não vai guardar mais de uma senha na cabeça. Só pode estar utilizando a senha da conta-conjunta no banco. 

Acertou na mosca! 

Essas mulheres!!!...

Verificou todos os e-mails da caixa de entrada. Nada a obstar.  Aí, a filha, sem saber o que dona Dadá procura, resolve, para ajudá-la, dar uma passada na “Lixeira” do provedor. Encontra lá o último dos e-mails que Jorge apagara da caixa de entrada, e lê :


“MEU AMOR, TE ESPERO ÀS 16 HORAS EM FRENTE AO CINEMA DO SHOPPING LINDOIA”.
Tua Valentina.     
                     
                                 *************


Jorge chega em casa, coração aberto, refeito de tudo, feliz...

Abraça a sua Dadá (que não corresponde)
e lhe dá a blusa de presente (que ela não recebe).  Tenta beijá-la.  Ela se afasta.


Abraço, presente e beijo. Tudo de  mentirinha!... Hoje não é Primeiro de Abril?  Arrependimento de Primeiro de Abril não vale. 
E tem mais:  eu sei de tudo!!!...
Sei que este presente você comprou no Shopping Lindoia...
Não foi pra mim que você comprou, não!... 
Foi para a sua querida VALENTINA!!!... 
Ela é que teve a hombridade de recusar, como eu recuso agora!..
 – Ataca Dadá, irada.   

Jorge nada responde.  Sua cruz vai ficando cada vez mais pesada.

                              
                               ******

No dia seguinte (sábado, hoje), a auxiliar de serviços domésticos, dona Ivonete, está na cozinha lavando os pratos e vestida com a belíssima blusa que dona Dadá "ganhara" do marido na véspera.  Inocentemente ela faz questão de mostrá-la ao patrão:


Gostou, patrão? Esta blusa foi a patroa quem me deu de presente!   Fica bem em mim, patrão?  Fica bem? – Pergunta Ivonete, vaidosamente. 

Fica muito bem, sim, dona Ivonete!  Essa blusa foi feita para a senhora...  Essa blusa foi feita para a senh...

Socorro, gente, socorro dona Dadá! Venham depressa! O patrão tá tendo um troço!!!... Caiu!... Tá morrendo!...  Socorro!...

É que a cruz do meu amigo já está insuportavelmente pesada:


JORGE  DESMAIA...  NOVAMENTE. 
           ********

          Ah, se ontem tivesse sido feriado!... 
            Shoppings, restaurantes, bares,
       hotéis, motéis, cabarés... tudo fechado.
            Haveria mais paz em nosso lares
             e as brincadeiras de mentirinha
          não passariam de nossas cozinhas.   



Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 03/04/2011
Alterado em 06/03/2012


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras