MENSAGEM DE UM FILHO DESGARRADO
Sou filho de uma andorinha, que me gerou e me guardou sob suas asas até que as minhas crescessem e eu pudesse lhe acompanhar. Pequeninhas, limitavam-se ao círculo do meu próprio ninho, se me espreguiçava. Quando arriscar meu ansiado voo? Minha mãe promete assistência ao meu começo de tudo. Ninho. É assim que chamam a maternidade onde nasci, camuflada, improvisada, pênsil no galho mais alto da frondosa e frutífera árvore de um pomar. Novo ornamento entre as folhagens. O pomareiro o respeita desde que nele me avistou recém-nascido. Zeloso guardador do pomar e do meu nascedouro. Lá do seu terreiro, oferece auxílio a minha mãe, garantindo minha segurança, mas adianta ser impedido de subir na árvore. Apenas, com alegres assobios, pode imitar o vento ou o trino de algum passarinho. Intento de me acalentar. Minha mãe, confiante, vê-me a salvo. Larga-me - relapsa - e vai à caça de mantimentos para a família. Aves que não voam, ciscam alimento lá no chão onde nunca estive. São tocadas e empoleiradas por meu suposto guardador. Fixo meu olhar nesse quadro e ali percebo, entre os comensais, alguns animais de estimação. Eles me amedrontam, pelo latir, pelo grunhir, pelo miar... É hora de almoço, dá-me calafrios imaginar-me presa de um daqueles quadrúpedes, disputando grãos, farelo e até pedaços de ossos. Aí, se temo descer, crescem mais ainda meu medo ao preconceber uma investida aérea em meu improvisado ninho - campo de pouso de outros predadores. Meu medo encurta o meu existir. E se eu quiser desistir, desistir de quê?!... Fica sem graça, viver num mundo assim repleto de ameaças! Mas preciso viver, ou melhor: sobreviver. Pra que ponto cardeal me dirigir e sumir? Como sumir, se inda nem sei voar? Que segurança me traz um tenro berço de palha que não satisfaz? Serve, muito mal, pra me agasalhar!... Uma clausura descoberta. Um corpo frágil. Esquelética migalha... Vou aprendendo, pouco e pouco, as desigualdades do meu novo mundo. Todos os seus habitantes são diferentes, muitos indiferentes. Alguns vivem, outros apenas sobrevivem. Uns fazem lauta refeição, enquanto seu irmão a faz no chão, comendo com a mão... Poucos têm; muitos, sem nada, se contêm. A maioria planta; a minoria suplanta a quem planta... Há até quem considere natural, aves de instinto destruidor, em sobrevoo, sombreando meu ninho, já na espreita do meu engordar! Emulação! Engodo! Morrer, no começo do existir, não é natural pra um condenado. Escuto as vozes dos meus algozes. Até respeitam o meu crescimento, todavia marcam o dia em que serei imolado. Sutil prenúncio de morte: uma sentença. Quase em agonia, preciso, às rápidas, robustecer meu corpo e, ainda nessa fase, ter a sorte de não ser visitado pelo inimigo. Mais do que nunca, necessito do pomareiro pra me salvar desse sacrifício. Urge conseguir o meu "brevê" . Com esse desíginio, miro a cada instante meu crescimento. Testo a sacudida de minhas asas, amolecidas. Como num pesadelo, pressinto minha morada cada vez mais disputada e cercada de predadores. Isso apressa o meu projeto de fuga. Quero dizer: deverei manter-me silente e disfarçado, se possível, até a esperada decolagem em direção ao firmamento. Quando?... Recosto-me às paredes do meu berço - em desalinho e já enfraquecido - e me anima sentir meu esqueleto enrijecido. Até que, certa manhã, desperto sobre penugens espalhadas pelo chão. Vejo-me recoberto de penas firmes, como se protegido por uma bela pênula. Sinto-me adulto. Escuto em meu peito a diástole mais forte. Pareço estar sendo regido por um outro Pomareiro, santo e invisível, de força superior à do meu primeiro guardador. Como se fosse uma magia ou coisa divina, Ele, num piscar de olhos, faz meu corpo avolumar-se, dá-me asas prontas para voar e muita energia para escapar da acossa de meus carrascos. Seguro, passo a não temer a morte, embora ainda incrédulo e titubeante. Aí, como um herói medroso, pulo do meu ninho, tonto, desequilibrado, sozinho e desamparado. Meu primeiro instante no ar. Emoção de nadador estreante que se atira em alto-mar. Muitas regras e técnicas por aprender. Que é do técnico ?!... Desejo intenso da alada presença da mãe andorinha ou do primeiro pomareiro. Eles me dão energia, me estimulam, me passam confiança e ensinamento. Estreio, sozinho e com vacilo, meu primeiro voo rasante. Quase bicando o chão, crio coragem e alço voo em direção ao sol. Proeza de navegar pertinho do céu. Não mais acerto o caminho de volta. Pássaros são assim, sutil diferença dos homens: voam sempre mais alto e para a frente, escalando horizontes. Nada mais me relembra a passada tormenta. Meu hoje de cada dia apaga todo ontem. Vivo feliz a esvoaçar e até aprendi a cantar canções bonitas no uníssono coral dos meus semelhantes. Canto como na fonte cantam as águas, sempre em andante, sem solfejar traumas, ou dissabores. Sei que minha mãe andorinha, retornando ao ninho, por certo dará incontáveis voltas à minha procura. Mãe guerreira! Sagaz caçadora! Sabe que não vai me encontrar, mas continuará sua busca, eu sei, de amor, de humildade, de resignação, de perdão... Vai guardar meu ninho como lembrança. Vai alimentar a esperança de um gentil Pomareiro me amparar e iluminar meus caminhos. E, diante de tudo, resignada, vai dizer: Amém !... Caminhará para a frente, como as águas, matando sua sede de amor, de justiça e do perdão de que tanto meus famintos predadores necessitam. Sua fé a tornará feliz. É criatura de Deus, como eu, e não pretende, jamais, contestar a missão ou mudar o sentido da vereda que Ele estabeleceu para cada um dos seus filhos. A quem encontrá-la, faça-a saber que guardo em mim a beleza do seu trinar, espalhado com amor e graça, nos campos e nas montanhas onde a passarada plana e esvoaça. Recife, maio de 2011. -------------------------------------------------------------------------------------------------------- NOTA: Num bar próximo ao cais, de passagem por Cabedelo, cidade portuária da Paraíba, um marujo, bom violonista, contou a sua história. Nunca soube a cidade ou estado brasileiro em que nasceu. Não conheceu o pai. A mãe trabalhava à noite (podia ser uma prostituta ou garçoneta). Deixava-o na casa trancada, junto com uma irmã, não sabe se mais velha. Certa vez, ocorreu grande queima de fogos na cidade. Acordou assustado procurando a mãe. Pulou a janela, não sabe como a abriu ou se já estava aberta. Ganhou a rua, escura, choramingando, procurando a mãe, sem saber dizer o nome dela ou o seu próprio nome. Lembra que alguém o pôs no colo. Dormiu. Fez uma viagem longa e cansativa, inclusive de barco.. Quando chorava, diziam-lhe que ia encontrar a mãe. Acha que teve umas três mães. Mais ou menos aos dez anos, era guia de um velho cego, que tocava violão e que lhe deu algum estudo, enquanto vivo. O cego morreu. Não foi aceito pela família, mas lhe deram o violão. Virou menino de rua em SP. Tocava para ganhar algum dinheiro. À noite, tocava no cais, onde dormia. Os doqueiros o protegeram. Terminou marinheiro. /// O autor, garoto à época, se comoveu, vendo-o comprar duas gaiolas de pássaros (dezenas) somente para soltá-los. A história ficou guardada em sua memória. Resume-a, agora, nesta prosa poética. .------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 07/05/2011
Alterado em 28/02/2017 |