Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

MEUS TEMPOS DE VÂNDALO – Parte I
 

Fred alcança a maioridade na condição compulsória de arrimo de família. Com esse encargo, como aventurar-se por outros caminhos diferentes das pescarias no mar, das corridas na praia e do praino onde se acostumou a viver?...  Acha que nunca terá o prazer de trilhar nas grandes matas, nas florestas, nos caminhos empedrouçados das montanhas. Ver é diferente do vivenciar e do experimentar. Já viu, sim, esse cenário verde nalguns filmes ou revistas, mas a sensação visual ou do imaginar nunca se iguala à de quem se fixa na região e escolhe uma paisagem como seu campo de observação e de intervenção. É como quem prepara as tintas e as espalha na tela com criatividade e com o próprio pincel. Pisar nos relvados campestres, ferir-se nas rochas das encostas, matar a sede no mesmo poço dos animais selvagens, não deve ser diferente de domar uma jangada nas pescas, dia e noite, sob a escuridão ou tempestade, ondas bravias, em alto-mar.  Fred se pressente desbravador de outros rincões e se prende a essas vãs comparações.  Os riscos e os prazeres são relativos, conforme a atividade à qual o homem se entrega. As diferenças devem ser menores do que a imaginação sugere. Nada diverge demasiadamente da pequenez ou da enormidade de Cabo de Areias. Em novas terras, basta adaptar-se ao clima, assimilar costumes e nivelar-se à sua gente. 
 

O plano de um dia casar-se com a namoradinha – Irma – reforça o seu sonho de uma vida menos trenheira.  Isso, inexoravelmente, o levará a uma mudança de hábitos e completa adaptação de todas as suas incumbências.   Por enquanto, quer tudo mudar, mas apenas sonha.

Entende que a vida é semelhante às palmas do coqueiro do seu quintal, que estão sempre mudando sem que se perceba o exato momento da mudança.   Portanto, nada a temer.  Decide-se a mudar de vida, mudando-se.

Aí, na primeira oportunidade que lhe surge, sente que precisa atender aos anseios da alma: inscreve-se em concurso público para ingresso em quadro de carreira numa sociedade de economia mista. Prepara-se para as provas como quem se obriga a um trabalho forçado, porque, se aprovado, não dispõe de apadrinhamento político para alcançar a nomeação – um tipo de corrupção muito em voga à época.  Surpreende-se, mais tarde, com o resultado: consegue boa classificação e é logo convocado, sem a humilhante dependência de um patrono.  Emprego estável, concorrido e de melhor remuneração do que o que ocupa na ferrovia, mas com a dura exigência de o aprendizado se iniciar em cidade do interior.  Topa ir à luta.

Larga tudo – preparação para o vestibular de engenharia, ensino voluntário de matemática na escola da paróquia, emprego na ferrovia, grupo de amigos, vícios, família, namorada... – e vai tomar posse no novo emprego.  Passo importante para a formação profissional, pro seu caráter e para a sobrevivência dos seus dependentes.  Poderá ufanar-se, sempre, dessa conquista, ou arrepender-se nalgum momento.

Já vai tarde!” – pensa.  Vai, sim, no trem que parte depois do meio-dia de um primaveril final de setembro.
 

Quatro horas e meia de viagem, tranquila, poenta e fumarenta. Chega no início da noite em Itabaí, sujo, sedento e fatigado.  Vê, no desembarque da estação, as primeiras garotas da  cidade.  Solícitas, manhosas e sorridentes, os belos olhos de uma delas atraem o moço desconhecido e lhe apontam o gráfico do endereço que ele procura.  Em  paga,  os olhos brilhantes perguntam o seu nome. – “Fred” – ele responde, cavalheirescamente, mas seu coração, condoído, começa a sentir saudade da namoradinha acanhada e ciumenta, que deixara chorosa na estação de embarque.  Uma dessas garotas recepcionistas, que Fred supõe ser a filha do chefe de estação, é por este estupidamente repreendida diante do público, por conta desse ligeiro assédio.  Vexame!  Fred acha que contemporizar só feriria mais ainda os brios daquele pai autoritário.    Costume machista da região.   Aquieta-se.  Fez que nada viu ou ouviu.

Calor estafante. Cidade pouco iluminada, sem vento e sem os coqueirais de sua terra.  Mesmo à noite, viu homens usando chapéus, tipo protetor solar, com certeza pra lhes servirem também de abano.   Chapéus de couro, de massa ou de palha.   Alpercatas grossas, solado de pneu, para suportarem bem as longas caminhadas.  Roupas encardidas, rotas – tão desajeitadas quanto os corpos que elas encobrem –, lavadas com águas enferrujadas e amareladas, puxadas das cacimbas improvisadas.  Cacimbas cavadas com as mãos no leito do rio, vazio. 
 

O andar desaprumado das pessoas, por conta do caminhar sinuoso nas trilhas das matas, das subidas íngremes ou das ruas da cidade - calçadas com paralelepípedos irregulares -  é diferente do de quem está acostumado com a fofura das areias de sua terra.  Mais adiante, encontra animais de chiqueiro misturados com os de estimação, soltos, disputando sobras de comida numa praça de pouca luz e sem arborização.  Pelo odor exalado, aqueles animaizinhos comem e descomem ali mesmo, nas calçadas dos passeantes.
 

Finalmente, Fred encontra a república onde pousam seus (futuros) colegas de trabalho.  Aquartela-se.  É logo avisado de que a jarra do banheiro está vazia.  Falta água para um revigorante banho de cuia.  A água para matar a sede está racionada.  Sabe que está na primavera, mas em Itabaí não existe essa estação, somente seca e, no período menos quente, de vez em quando, alguma chuva cai, sempre em volume insuficiente para encher as cisternas.  

Baixa o tom da conversa, porque alguns leem e outros se preparam para dormir.  Sussurrando, compra uma rede usada do primeiro colega que conhece, a pagar quando receber o primeiro salário.  Estende-a nos armadores de um corredor estreito.  Precisa dormir.  Dormida difícil, bastante muriçoca, sem lençol, pouca roupa, calor excessivo...

Indormido, levanta-se, manhã cedo, com o rosto, pescoço, braço e pernas marcados pelas muriçocas sequiosas de sangue novo.  Conferiu as jarras ainda vazias.  Nada se lava, nada se enxágua.  Encara a secura por uma nova vida com essa recepção jamais esquecida, embora relegue-a, depois, a um plano desimportante.

Recorda sua predisposição em assimilar, rapidamente, os encantos e desencantos dessa cidade desafio.  Envolver-se-á com sua gente.  Apreenderá seus costumes.  Resignar-se-á com possíveis agruras.   Enquanto não, seu termômetro denuncia que, lá em Cabo de Areias, durante o dia o sol esquenta as ruas arenosas e a temperatura se eleva.  Porém, à noite, o clima se torna ameno por conta do rápido resfriamento das areias e do fenômeno dos ventos de travessia, que, vindos do mar, só encontram obstáculos nas cumeeiras das casas e nos coqueirais.  A cidade inteira dorme perfumada de maresia.

Já em Itabaí, a temperatura é alta e assim se conserva dia e noite, porque o lugarejo nasceu e cresceu sobre lajes, que mantêm, quase uniforme e por longo tempo, a emissão de calor.  Um forno permanentemente aceso.
 

A água chega mais tarde, em lombo de burro, escassa, pingada, amarelada, quente e com alto teor de salinidade.
  

Início do trabalho.  Apresentação pessoal de rotina aos administradores e aos demais colegas da empresa.  Pelas marcas na face, Fred constata que três outros colegas estão também assumindo o novo emprego na mesma data.  Isso é motivo suficiente para que alguns colegas mais antigos, solteiros, logo sugiram a festa de posse dos novatos, no pós-expediente, ao anoitecer.
  

Que festa?  Sim.  Festa no cabaré de Rita do Bonde, como de praxe, engordurada com o enjoativo caldo de uma iguaria cujo nome estava estampado na parede externa:  “MÃO DE VACA, se não suar não paga”.
 

Rita do Bonde, quase sexagenária, negra, cabelos grisalhos, mal vestida, muito gorda e, indubitavelmente, mal lavada, mas de bons tratos e bons pratos, trata sua clientela com esmerada cortesia.  Estabelecera-se num bonde antigo, atirado e abandonado ali, num terreno baldio.  Espremidos no pequeno espaço, jantam e se juntam aos clientes algumas prostitutas por ela convidadas.  Parece também adivinhar os desejos de sua freguesia.
 

Fred saboreia a “mão de vaca” como tira-gosto de alguns tragos de cachaça.  Desabituado com a ingestão de bebida forte, começa a se sentir como um marinheiro, cercado de sereias, nas noitadas musicais e etílicas dos bares da orla portuária de Cabo de Areias.  O calor do ambiente, o suor decorrente da iguaria engolida e o ruído intenso e persistente das conversas e das canções que não combinam com o seu estilo, provavelmente, são a causa do seu rápido embriagamento.

Por conta dessa ebriedade, um ato inocente e hilariante envolvendo Fred, fê-lo ameaçado de perseguição policial, prisão e perda do novo emprego, por denúncia ou vingança de seo Justino – o chefe de estação – já a partir do dia seguinte.

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Continua em:
 MEUS TEMPOS DE VÂNDALO - Parte II (final)
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Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 19/07/2011
Alterado em 19/07/2011


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