Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

MEUS TEMPOS DE VÂNDALO – Parte II (final)
 

Tonto, míope e com a cabeça em rodopio, Fred procura entre os comensais a fisionomia de alguns “amigos” de Cabo de Areias.  Pra induzi-lo ao vício, deduz que todos os viciados se parecem uns com os outros.  Lembra de, ainda na menoridade, ter-se iludido e embriagado por alguns desses “amigos”, que alegaram a praxe compulsória da celebração do batismo de todo aquele que ingressasse no grupo.   Batismo com excesso de aguardente.  Sentiu-se martirizado.  Seu sofrimento fê-lo jurar que, depois dessa, nunca se deixaria embriagar por mais ninguém!...  Falhou.  Falhou, agora, na maioridade, por ocasião de um aparente batismo em um novo grupo de outros “amigos”. 
 

Tenta levantar-se.  Sente o copo e o corpo desaprumados.  Começa a se culpar: – “Como me deixei cair noutra armadilha?” 

Sua culpa, entretanto, está em beber, não por pressão ou  obrigação, mas para exprimir virilidade, poder e a certeza de se sentir, no mínimo igual aos outros, livre e dono do seu querer.  Para, emborca o copo na mesa e procura administrar sua tenra lucidez. O juízo está salvo, apenas as pernas bordejam.  Ninguém há de perceber seu estado etílico, afinal a maioria dos habitantes de Itabaí já anda a passos cambaleantes.


Ainda procurando equilíbrio – meio pra lá, meio prá cá –, sai da “festa” por volta das 20:30 horas, ladeado pela algazarra dos novos “amigos” e ao som de violão, saxofone e canções antigas que todos cantam nas repetidas serenatas.

Seguindo o roteiro dos seresteiros, conhece, de uma só vez, os meandros e os malandros da cidade.  Vai anotando os nomes das ruas na memória, todos fáceis de esquecer.   Diz não tolerar o bairrismo, mas lembra que, em sua terra, as ruas, praias e vielas têm nomes mais românticos, tais como:  rua da Aurora, praia Formosa, rua da Borboleta, travessa do Cajueiro..., enquanto Itabaí conserva nomes da época do coronelismo, como:   rua Tenente Bandeira, rua Capitão Maroja, travessa Tenente Saturnino, praça Coronel Paulino... Ufa!  Até que enfim, uma exceção:  rua do Rio.   É a rua que termina na margem direita do rio Paraí e prossegue pela ponte do Leva-e-Traz, única via de acesso, sobre o leito do rio, pra quem se destina a  Campinópoles.  Ali, pra encerrar a noitada, o grupo canta mais algumas canções na porta de seo Justino – o chefe de estação –, certamente, não para homenageá-lo.

A rua do Rio se encontra em recuperação.   Pedras soltas e raras escavações.  Em determinado momento, Fred tropeça e se estende sobre um monte de paralelepípedos, como se ainda embriagado – motivo de chacota do grupo.  Levanta-se irado, braços arranhados e – talvez por vingança – sai arrastando por uns dois metros, mas na mesma rua, o cavalete que indica: “Trânsito Interrompido”.  Aí, Renato, que se integrara ao grupo, e que já nasceu brincando, aproveita o ensejo pra criar uma graça:  coloca o desgraçado do cavalete no vão de entrada da ponte do Leva-e-Traz.  Seo Justino, pela janela entreaberta, testemunha a ocorrência, mas, propositalmente, não se preocupa em consertar, ou pedir pra consertar, o malfeito.
 

Fred, ignorando esse último gesto de Renato, de pura infantilidade, que nem assistiu, segue com o grupo até a república.  Cansado, ainda com o hálito amargando a embriaguez, arma sua rede e dorme.

Lá pras tantas, ônibus, caminhões com pesadas cargas, automóveis dirigidos por viajores – ora compreensivos, ora sonolentos, ora arrogantes –, rodam loucamente pelas ruas, becos e praças da cidade à procura de passagem alternativa para Campinópoles.  A ponte do Leva-e-Traz está interditada.  Os moradores, alheios ao ocorrido, apontam-lhes exatamente o caminho que culmina na mesma ponte.   Quem segue a informação, topa outra(s) vez(es) com o indicativo:  “Trânsito Interrompido”.  Mais de duas horas de angustiada procura.  Pra quem viaja à noite, enorme perda de tempo numa cidade que nem luz tem pra se amostrar...

Um dos viajores, repórter do jornal de maior tiragem no estado vizinho – cuja capital é Mauricea –, procura o delegado em sua residência e anuncia que publicará a  irregularidade  como  displicência  das  autoridades    locais. – “O país inteiro tomará conhecimento desse absurdo” – ameaça.   O pobre delegado acorda assustado e, sem ao menos trocar o pijama, sai correndo pelas ruas até o local da baderna.   Lá, constata que nada há de irregular na ponte do Leva-e-Traz.  Libera-a e repõe o cavalete à frente do monte de paralelepípedos.  Tarde demais:  a remoção/ausência desse cavalete contribuiu, também, para que alguns veículos se atolassem nas escavações de uma faixa da rua do Rio, em recuperação.  O trânsito, quando para, enlouquece o mundo.   Itabaí experimenta o primeiro, único e mais conturbado engarrafamento de sua história.

Seo Justino – o ciumento chefe de família e de estação –, que obrigou a filha a ficar deitada na hora da seresta, observa tudo através da fresta da janela.  Espera, agora, a passagem do delegado em sua calçada pra delatar o vândalo, ou melhor, relatar sua versão sobre o ocorrido.  E o faz.

No dia seguinte, ao se abrirem as portas da empresa para o público, o delegado é o primeiro a entrar – e vai direto ao gerente geral:

– “Não admito desrespeito!” – ouve-se o seu grito – “Funcionário desta empresa nunca me deu o menor trabalho!” – continua o delegado, ainda em tom elevado para que todos percebam quem está falando e respeitem sua autoridade.  – “Pois saiba que um vândalo, seu funcionário, ontem à noite, abusou da molecagem”.  – E conta em detalhes a versão que lhe passara seo Justino.

– “Mas o senhor delegado tem provas disso, ou está apenas suspeitando?” – repele o gerente.

“E eu sou lá homem de suspeitar ou de insinuar, seo gerente!  Quando um delegado fala é porque o fato aconteceu!”.   Aí, faz um aceno chamativo para seo Justino que, enfileirado junto ao público, só aguardava o convite.

O delegado apresenta seo Justino ao gerente, enaltecendo suas qualidades morais e sua função de grande responsabilidade como chefe de estação.  E já emenda uma pergunta:

– “Seo Justino, por sua gentileza, seja homem e aponte para o gerente, agora, agora mesmo, qual foi o irresponsável que, ontem à noite, arrastou o cavalete e o pôs no vão de entrada da ponte do Leva-e-Traz”...

– “Foi aquele ali, seo delegado e seo gerente!  O magricela que está de óculo de alcance, camisa branca e gravata vermelha.  Foi ele, sim!  Digo aqui e digo na cara dele!” – afirmou categoricamente e tão irado quanto o delegado.

O gerente, atônito, se rende e chama Fred, para interrogação e esclarecimento:

“O senhor tomou posse nesta empresa ontem, é verdade?” – indaga em tom insinuativo, como se se dirigisse a um marginal.

– “Sim, senhor” – responde Fred com a rapidez de um militar.

– “E já me traz problemas, não é verdade?

”Não, senhor! Não que eu saiba!”

– “Não sabe?”... – intervém o delegado – “Quer dar uma de engraçadinho, é ? ! ...   O trânsito da cidade, no sentido Mauricea / Campinópoles, duas cidades da maior importância econômica para os dois estados vizinhos, ficou interrompido durante duas horas e meia, ontem à noite, por sua causa, e você me diz que não sabe, seo pilantra!  Está aqui seo Justino, homem sério, que é a testemunha ocular de que você arrastou e colocou, a propósito, o cavalete, com os dizeres `TRÃNSITO INTERROMPIDO´, no vão de entrada da ponte do Leva-e-Traz.  E agora?  Você tem mais pra dizer, o quê?  Que, por acaso, estamos mentindo?”

“Sim, senhor!” – responde Fred, com a mesma agilidade militar com que respondera ao gerente.

– “Pois, esteja preso!  Primeiro, por ser comprovadamente um desordeiro.  Depois, por desacato à minha autoridade” – retrucou o delegado, resmungando que jamais lhe haviam chamado de mentiroso durante toda a sua militância na polícia.  E saca as algemas do bolso.

“Alto lá, delegado!” – levanta-se o gerente, interpondo-se entre o seu funcionário e o arrogante comissário – “Sua autoridade deve ser exercida na delegacia.  Aqui, não!  Aqui, sou eu quem dá as ordens! Sou o mandatário desta Casa.  E o senhor está na minha presença, na minha seara.  Eu é que convoquei meu funcionário.  Eu mesmo o inquiri.  Se for o caso, eu o demitirei.  Não lhe cabe fazer qualquer pergunta, tampouco levá-lo preso e algemado.  Ordem de prisão, aqui, para qualquer funcionário meu, só será acatada se for por decisão judicial.  Enquanto não, esqueça tudo o que se falou nesta gerência”.
 

O delegado, aborrecido, mais que depressa, sai à procura do Juiz. Não o encontra na Comarca.  Dirige-se, então, ao Promotor, que é diretor do colégio estadual, professor de língua portuguesa e, em casos emergenciais, substitui o Juiz nos seus eventuais impedimentos.   No caso, trata-se de ocorrência grave de: desordem, vandalismo e desacato à autoridade.

– “Doutor Promotor, preciso falar urgente com Vossa Excelência” – interrompe o delegado a aula de português da quarta série ginasial.

O Promotor, solícito, suspende sua aula por alguns minutos  e vai ao corredor receber e ouvir a súplica da maior autoridade policial de Itabaí.  O delegado, que precisa mostrar serviço às lideranças políticas da região, diz ao Promotor que somente vai descer os batentes daquele colégio com o mandado de prisão na mão.

– “Vamos mostrar pra esse cabra que, nesta cidade, o mal se corta logo é pela raiz, não é não, Doutor Promotor?!” – incita o delegado, apertando o cinturão e reposicionando o revólver por dentro da camisa de brim cáqui, bem perto do umbigo visivelmente estufado.

– “Concordo com o senhor, delegado. Quem erra, tem que pagar pelo erro. Vamos dar uma lição nesse vândalo.  Mas, por gentileza, me deixe completar minha aula.  Enquanto isso, traga-me o nome completo e endereço do suspeito e da testemunha, a fim de que eu possa expedir o mandado de prisão” – recomenda o Promotor, com habilidade.
 

O delegado, desmanchando-se em suor e autoridade, adentra no gabinete do gerente e, interrompendo o atendimento a um cliente, solicita, em caráter de urgência, os dados pessoais de Fred.  E deixa um recado: – “Pois avise a esse moço que ele, hoje, vai almoçar comigo na prisão!”.   Retorna, a pé, com a mesma celeridade, passa pela estação de trens, pega os dados de seo Justino e...

– “Pronto, Doutor Promotor.  Estão aqui os nomes.  Pode datilografar o mandado de prisão!” – disse, com a enorme satisfação de mais um dever cumprido.

No local de trabalho de Fred, todos os funcionários, e até alguns clientes, se compadecem da sua situação.  O mundo parece estar desabando sobre ele.  Só teve a sorte de assumir no novo emprego e já vai perdê-lo por “justa causa”.   Garibaldi, do setor de pessoal, lança a ideia de desconsiderar a sua posse – de vez que os documentos ainda não foram encaminhados para a Direção Geral.  Segundo ele, Fred retornaria a Cabo de Areias e pleitearia sua posse noutra localização.  Uma forma de se esquivar da chirinola em que está metido.

O gerente concorda com a sugestão de Garibaldi, mas previne a Fred de que ainda dependerá de a promotoria não levar a cabo o processo judicial que está sendo aberto contra ele.   Vai ao encontro do Promotor.

Fred o acompanha, insistindo para que ele não proceda desta forma: – “Se me querem prender por uma coisa que não fiz, que me prendam.  Não estou fugindo, tampouco me escondendo.  Acho que vão me dar o direito de defesa, não?!...  Somente peço para que esse assunto não chegue ao conhecimento de minha mãe ou de minha namorada.  Não quero que se envergonhem de mim!

– “Fred, meu caro, você esquece de que está numa região em que o direito do cidadão de `ir e vir´ ainda está, de alguma forma, na mão dos cabos eleitorais, isto é, dos pilares do coronelismo que ainda infecta estes rincões.  Os delegados fazem o que aqueles senhores querem – e vice-versa.  São eles quem os nomeiam.  Quando alguém quer se projetar em cima de uma vítima, não se pode prever bons resultados.  Minha conversa com o Promotor vai ser só uma tentativa de mudar o rumo das coisas...” – e vão subindo, os dois, a escadaria do colégio.
 
Encaminham-se à secretaria.  Lá estão:   a secretária, fazendo anotações manuscritas;  o Promotor, datilografando, de costas para a porta de entrada, o mandado de prisão;  e, sentado ao seu lado, o delegado  - ansioso pra dar provas, não de sua autoridade, mas do seu ferrenho autoritarismo.


– “Oxente!  Olha só, Doutor Promotor!   A caça pedindo pra morrer nos pés do caçador!... – E solta uma enorme gargalhada. Ainda ironiza: “O mandado de prisão está aqui, quase pronto, bem quentinho, nas mãos de quem mantém a ordem nesta cidade!  Posso algemá-lo agora, seo gerente?  Arre égua!...  Aqui é a minha seara!...”

O Promotor termina de datilografar o mandado e, somente depois de relê-lo, se volta para os visitantes.

– “Freeeeed ! ! ! . . . “ – Levanta-se e abraça fortemente o seu ex-aluno. – “Eu sabia que este nome não me era estranho, por isso, estava decidido a ir lá, no seu local de trabalho, conferir”. E, para espanto e frustração do delegado, rasga o mandado que acabara de datilografar.   Aí, se volta para o delegado:

– “Meu caro delegado, conheço este moço há muitos anos.  Conheço-o como estudante e como professor voluntário em Cabo de Areias.  Conheço-o como ferroviário, balconista, estivador e pescador.  Conheço-o, sim, e muito,  principalmente, como arrimo de uma numerosa família.  Eu jamais acreditaria que qualquer ato de vandalismo partisse de sua cabeça”.

O delegado, como num ato penitencial, sem dizer uma só palavra, abraça Fred, demoradamente.  Inesperado pedido de desculpas.

O gerente, por sua vez e pelo que assiste, diz lamentar que, por um triz, sua empresa estaria punindo, naquele mesmo dia, um funcionário sem culpa, ato que resultaria em grande prejuízo para a sua carreira funcional.  Pede a compreensão de Fred para o seu procedimento de administrador.   Diz-se muito feliz ao ver um sério  problema solucionado.  Deseja que nada mude.

A secretária chora, copiosamente. – “Por que choras, Rosária? Não vês que tudo chegou a um final feliz?!”... – Inquiriu o seu diretor.

– ”Desculpem-me!” – Procura conter-se, enxugando, talvez os mais bonitos olhos de Itabaí – “Choro por conta do machismo do meu pai.  Ele sempre procura esconder-me de todos os homens que se aproximam de mim.  Qualquer um que olha para mim é logo considerado um malfeitor, um crápula,  um bandido, um vândalo...   Fui  a  primeira pessoa a receber Fred, na estação ferroviária desta cidade, e ainda lhe ensinei o caminho para chegar à república.  Paguei muito caro por esse gesto de anfitriã.  Não preciso entrar em detalhes, mas sei que, a depender do meu pai, jamais conhecerei um homem, jamais me casarei...  Choro por ver que Fred estava sendo condenado por conta de uma atitude de macheza e, o que é pior, com o falso testemunho do meu pai – o digno senhor Justino.  Perdoa-nos, Fred.  Meu pai foi o teu algoz, mas a grande vítima, a prisioneira sou eu”... – Baixou a cabeça e continuou, pesarosa, o seu trabalho manuscrito.

Foram almoçar juntos:  o  respeitável diretor e promotor – José Francisco de Almeida – e Fred, com o seu gerente e o delegado - seu novo amigo. 

No animado papo do restaurante, ficou ainda acertado que, por extrema necessidade de preencher o quadro de professores,  Fred assumiria a cadeira de matemática no Colégio Estadual de Itabaí, no turno da noite, já a partir daquele mesmo santo dia.


Os colegas da empresa sacrificaram o intervalo de duas horas para o almoço, solidários e na expectativa do que poderia acontecer com o novo colega de trabalho.  No retorno de Fred, ao final do segundo expediente, estavam todos famintos – de notícias e de alimento.


Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 19/07/2011
Alterado em 12/08/2011


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