Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

                   PROCURA-SE UMA PROFESSORINHA
 
 
Primeiro dia de aula.  Oito crianças, formando quatro casais, acomodadas numa pequena sala, se entreolham como estranhas.   Vivem a época da locomotiva tipo “maria fumaça” e dos navios a vapor, quando  a idade oficialmente exigida para se iniciar na escola é a delas – entre seis e sete anos.  São filhos de ferroviários, portuários e pescadores, iguais na pobreza de seus trajes, lápis, cadernos e de suas mesas.
    

A professora, dona Dinha, muito jovem, fisionomia de adolescente, pede que fiquem de pé e faz uma oração coletiva.   Apesar de a caixa de giz estar cheia sobre a mesa, nesse dia ela nada escreve no quadro-negro.  Muita coisa precisa dizer àquelas crianças antes de lhes ensinar o trivial bê-á-bá.  E o faz.

Os dois janelões da sala se abrem para o nascente.  De lá se avista o mar, bem detrás do coqueiral.  E, no mar, o farol, jangadas à vela e garças a pescar.   O grupo escolar fica beirando a rodovia, sujeito à poeira barrenta que os caminhões de carga levantam na última curva em direção ao cais do porto.
 

Dona Dinha dispõe seus novéis pupilos em dois sub-grupos, masculino e feminino, em cada um dos janelões empoeirados, e lhes pede para tudo observar até a linha do horizonte. Tudo. Como as crianças, ainda assustadas, não se conhecem entre si, não é necessário pedir-lhes que a observação seja feita em silêncio e individualmente.  Após um quarto de  hora, voltam todas para suas cadeiras de origem.
 

A professorinha pede que lhe falem acerca do que viram de mais importante além da pontinha dos seus narizes.  Aí, começa a interação.   A turminha se anima através de um longo e incomum bate-boca.  Respostas individuais contraditórias.  Um mesmo objeto, ao longe, é visto e interpretado de forma ambígua, gerando conflitos.  Uns falam de algo pinçado da imaginação, que não está lá no momento, mas que alguns concordam que até deveria existir, mas o descrevem sob outro ângulo.  Há quem até nada ache de interessante para comentar, talvez por não haver ainda encontrado a ponta do próprio nariz.  Outros insistem em voltar ao janelão para confirmar a autenticidade de suas visões.  Dentro dessa acalorada conversação, todos já se conhecem - e sem qualquer inibição.  Chega a hora em que saem animados para o recreio, alguns ainda defendendo seus pontos de vista.

Acaba o recreio.  Dona Dinha vai anotando o relato individual dos seus pupilos.  Todos diferem de certa forma.  Alguns já começam a aceitar a ideia do outro, embora com restrições.  E ela, com uma enorme satisfação pelo resultado obtido, se apronta para o seu pronunciamento até o final da aula.

Diz que todos precisam conviver com as diferenças, de visão, de ideias, de pensamentos, de valores, de cor, de altura, de beleza, de conhecimento, de raciocínio, de inteligência, de fortaleza, de idade, de vaidade, de coragem, de aceitação da opinião do outro...  O mundo fica melhor.
  

O belo, o feio, o trágico, o sagrado, o desprezível, são também, mesmo em linguagem infantil, percebidos e relatados.  Estão todos igualados num mesmo ambiente, no mesmo janelão, porém delineando horizontes diferenciados uns dos outros.  Por mais iguais que sejam,  em altura, idade ou pobreza, dificilmente têm ou terão a mesma visão ou a mesma opinião acerca das coisas que suas mãos ainda não alcançam.   Quis a professorinha mostrar que a vida é o desenvolver constante e crescente de uma energia que está dentro de cada ser.  E, em se tratando de um ser vivo racional, essa energia lhe permite uma enormidade de situações imaginárias, das quais se escolhem e se extraem novas ideias delimitadas por  múltiplos horizontes.   As ideias, enquanto individuais, têm valor ínfimo ou nulo para um grupo social organizado.  Precisam ser amplamente discutidas, investigadas e experimentadas, a fim de aproximá-las mais do senso comum, da verdade, e, só assim, serem aceitas pelo grupo.  Expor uma ideia é diferente de impor uma ideia.
 

Abre, dessa forma, um novo caminho para os seus pupilos, um convite ao debate, à polêmica..., um estímulo ao saber cada vez crescente.  Uma maneira de, embora indiretamente, influenciar no comportamento das famílias e da comunidade.    Estimula a discussão, noutras situações de aula, de todo e qualquer problema afeto à comunidade.  Na verdade, ela tenta provar o quanto é desigual a percepção de tudo o que é inserido em órbitas distanciadas do espaço de cada um.  E arrisca dizer que o olho, único órgão capaz de passear à velocidade da luz, capta, em detalhes, cenas que o cérebro vislumbra e decodifica como boas ou más;  pretas, cinzentas ou coloridas;  sublimes, divinais ou meros objetos inanimados ou de pecado.
 

Filosofice da professorinha?

Catequista na igreja - nunca teve a chance de estudar filosofia -, ela encerra o experimento associando essa energia à força espiritual de cada um, assegurando que o espírito em contínua atividade, procura sempre algo especial para identificar-se ou renovar-se.  Em inúmeras outras oportunidades, repete esta explanação, com palavras simples, para que todos entendam a sua visão de universo.

Filha de Cabo de Areias, de um pescador e de uma mulher que seca ao sol peixes no varal, torna-se cientista prática, inocente sábia...  Saboreia a beleza, a riqueza e os perigos do mar, desde a espuma nos delicados pés à inatingível linha imaginária que o separa do céu.  Possui o dom de saber transmitir os recados de Deus e da natureza para os pequeninos em formação, porque o mar lhe ensinou a ver o claro-escuro, o sim e o não, o sobe e desce da vida...  sob a perspectiva de uma deusa.
  

Dezoito anos depois, sob um regime em que se coíbe o livre pensar, a professorinha, sentindo-se perseguida, se refugia noutra cidade distante e não mais retorna.  Se viva, é, agora, uma octogenária.  Fred, que nunca esquece sua primeira e tão profícua aula e lição de vida, sumamente agradecido, beija, com muito carinho, seus pés e seu talento.
Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 31/07/2011
Alterado em 14/10/2011


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