A CASA DOS QUE AINDA SONHAM
Numa casa de repouso para idosos, recém-fundada, encontra-se hospedada uma criatura por demais serena. Serena no cuidar de suas coisas, no falar com os demais hóspedes, no tratar os visitantes... Veste-se de branco. Vestido bem passado. Algum tempo de convivência com essa sorridente e queda criatura – que socorreu, com rara habilidade, a uma vizinha de apartamento acometida de convulsão súbita –, foi o bastante para que se lhe descobrissem a profissão. Fora enfermeira durante trinta e cinco anos de vida ativa. Com a sua mudez ou sisudez próprias, esforça-se para manter animados os viventes sob seus cuidados.
Também lá está um senhor, trajado de macacão brim cáqui, que não cessa de desapertar, apertar e substituir torneiras, tubos e luvas da instalação hidráulica da casa. Ao contrário da enfermeira, a enérgica batida de seus instrumentos de trabalho provoca uma ressonância que, todos os dias, desde cedo, quebra o silêncio do ambiente. Tez corada. Idade avançada. Em tudo, lento e por demais barulhento. Aposentado. Orgulha-se dos cinquenta anos de vida ativa como encanador. Pra compensar o seu barulhaço cotidiano, os reservatórios de água não mais ficam vazios. Os hóspedes, seus semelhantes, agradecem-lhe a continuidade e abundância dessa saliva da natureza, essencial à vida. Outros hóspedes, que amam o que fazem – nem percebem –, mostram igualmente suas qualificações e vocações. Todos se igualam sob um mesmo teto. O último hóspede a chegar é eletricista. Aliás, poeta e eletricista. A idade já lhe sugara parte da energia física, não a mental. Sobre a cabeça, um boné branco encobre alguns fios de cabelo de mesma cor. Diz que a terra inteira ficará inerte, infértil e no escuro, se cessar o encontro e junção dos polos contrários. Macho e fêmea têm necessidade e precisam abastecer-se da potência um do outro. Rima, por divertimento, café com relé, feijoada com tomada, macarrão com fiação... Mas, quando inspirado, sua verve aflora. Põe-se a poetar, numa rede, a baloiçar-se como se navegasse:
A energia que move o mundo
deriva do acasalamento de dois polos diferentes: o que provoca e o que consente. Desse coito, uma centelha se faz e vira chama, que se inflama e se transforma em feixe de luz. E se reproduz, em paralelo, pra melhor divisar o belo. Essa chama amor se chama, como está escrito na receita do seu Criador, que santifica e perdoa o agarramento, luminoso e prazeroso, do par que se escolhe, se acolhe e se doa. * Aí, sem se cansar, repete com outros versos, horas a fio, esse metafórico desafio da vida, num filosofar chocante. Maneira prazenteira de se apresentar. Os que coabitam nessa casa, se achegam ao jardim atraídos pelo belo poemar do irmão recém-admitido, clarejando de luar as rugas uns dos outros. *** Interação de linguagem poética:
poetisa luciana vettorazzo cappelli
Franca (SP) - 16/09/2011 Ter um lugar ideal pra viver num doce envelhecer é mesmo a idade do melhor equilibrio
como se pode aqui no causo de Fernando ver
tirar as máscaras e os espartilhos ser tudo que se foi um dia do jeito que se gosta na hora em que bem entender chegar da essencia à real fantasia enfermeiros, encanadores, eletricistas e poetas ao pé da lareira e da rede matar a sede de um coração calmo e em paz serenidade da mulher e do rapaz o sonho de abraçar quem nos entende bom seria que esse dia não demorasse tanto assim a chegar... Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 13/09/2011
Alterado em 30/09/2011 |