Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

COMPENETRADO: ADJETIVO OU INTERJEIÇÃO?


Fred chega à tardinha em Piracuruca, região setentrional piauiense.   Não encontra hotel.  Sabe que os colegas, funcionários da empresa que representa, se acomodam numa república.  São dez, ao todo, moças e rapazes.

Localiza a casa e é acolhido no pós-expediente da agência.

Passará trinta dias reformulando serviços naquela jurisdicionada. 

Cedem-lhe, temporariamente, a cama de um colega, paraibano, que se encontra em descanso de férias.  Até quando, ninguém sabe precisar assim de imediato!...  Mas, para os que o receberam, o mais importante é que ele, o visitante, se sinta bem acomodado, como se estivesse em sua própria casa. 

À noite, dá um giro rápido na cidade, ladeado por um casal de colegas que ali coabitam.  Param, para relaxar, num barzinho – tipo palhoça – situado no entroncamento das rodovias que levam ao Estado do Ceará ou à única faixa litorânea do próprio Estado:  Parnaíba.  Ambiente aconchegante e animado pelo vozear de uma clientela jovem.  Conversam amenidades.
 
Atento ao que parece novo ao seu redor, estranha a quietude absoluta de alguns senhores, de meia-idade, que ocupam as quatro mesas do seu lado esquerdo, justapostas e ainda descobertas. 

Todos parecem alheios a tudo: mudos, sisudos, em verdadeiro sentimento lúgubre.  Contraste com a descontração do outro lado do ambiente, onde os sorrisos se encardem de fumaça.
 
– “Não estão aqui pra rezar, pregar ou velar o embriagamento dos que se divertem!...” – presume. 

Incômoda circunspeção.  Um ouvido no prazer dos que se divertem, à sua direita, e outro no silêncio insosso dos vizinhos do lado oposto.  – “Arre!

Tamborila na mesa as canções típicas da região, pra se harmonizar com o rito e o ritmo dos seus novos amigos.    Só o conflito de humores entre os dois pontos cardiais opostos daquele barzinho o faz, vez ou outra, sair do compasso.

Aí, o relógio marca meia-noite em ponto!  – Graças! –  A nova folha do calendário energiza o ambiente.    Corre-corres:  para forrar as mesas, desempacotar o bolo, acender as velinhas...  – “Parabéns pra você... ... ...muitos anos de vida.” –  Um senhor, alto e magro, inclina-se para apagá-las.   O tempo o faz sexagenário a partir desse sublime momento zero.
 
Embora já tenha pedido para encerrar a conta, devido ao adiantado da hora, Fred, agora mais tranquilo, acompanha as palmas e o canto de cumprimento, como se conhecesse o aniversariante.

Sente-se um igual na espontaneidade coloquial da prazenteira madrugada.  

Garçons à escuta, atendendo às ordens exclusivas do aniversariante.  Por isso  – julga –, a conta ainda dorme no caixa.   Melhor voltar-se para o bate-papo excitante em sua mesa!...

Alguns minutos mais, ouve-se um “psiu!” alto e prolongado.  Todo o barzinho emudece.  Começa uma sessão e sucessão de discursos.   A conversa alegre vira sussurro, em respeito aos oradores. 

Cada um que complete a sua fala já indica o próximo a discursar.  Hábito próprio da região:  todos os convidados falarão alguma coisa.

E haja fala!  E haja bajulação!  E haja emoção!  E haja palmas em profusão!... 

De repente:
 
– “Agora, com a palavra, o visitante” – gritou o último orador.

Fred, nem aí ! . . .  – “O visitante deve ser outra pessoa!” – supõe.  Nada sabe a respeito do aniversariante.  Como fazer um discurso assim improvisado?...  

Quis continuar a conversa, quando ouviu novo chamado e o cutucar sussurrante do colega: – “Querem que você fale.  Levante-se e diga alguma coisa.  O homenageado é um cartorário de prestígio... e gosta de ouvir elogios...  Vai!

Mente meio ébria, organiza um improviso de dois ou três minutos.  Agradece a honra do convite e – já para poupar os demais – diz estar falando em nome do seu grupo de amigos.  E prossegue:

–  “...um senhor cujo nome ainda não sei, cuja idade também não sei, mas que, pela aparência, pelos gestos, pelo tipo físico, posso compará-lo ao meu genitor...  A tez morena;  a voz audível e austera;  a mesma capacidade de atrair amigos;  a mesma compleição, saudável e robusta.  Dinâmico, amoroso, inteligente e COMPENETRADO. Parabéns, caro aniversariante.  Muita paz junto aos seus.  Sucesso nos seus empreendimentos.  Muitos anos de vida!

Concluído o improviso, estende a mão para cumprimentar o homenageado, que lhe dá as costas. 

Nenhum dos convivas  do aniversariante  aplaude o inditoso discurso,  que  – segundo um deles – “agradou no início e se borrou no final!”.

Ao contrário do que Fred esperava, todo aquele grupo volta a ter as mesmas caras amarradas de antes da meia-noite.  Desconhece a razão.  Fica mais assustado quando seus colegas, percebendo o conflito, o arrastam até o “fusquinha” estacionado ao lado e o empurram rispidamente para o banco traseiro.  – “Nem no camburão da polícia é assim!” - pensa.   Semiconsciente, jura inocência.  Está certo de não ter cometido asneiras...

– “Amigo – diz, dirigindo o veículo, a colega mais conhecedora dos costumes da região –  muito cuidado no que você diz por aqui, se quiser ter saúde!  Você acaba de desmoralizar uma pessoa, de muito prestígio na cidade, com um termo pejorativo, o maior dos palavrões!...

– “Mas eu não pronuncio palavrões!...  Jamais usei-os, mesmo em brincadeiras!...  Isso faz parte do vocabulário dos marginais...” – rechaça.

– “Pois aprenda, de uma vez por todas, que a palavra COMPENETRADO, aqui, somente aqui, significa: salafrário, cachorro, cafajeste, elemento indecente e tudo o mais que possa macular o brio da outra pessoa!”  –   alerta a colega, que acrescenta:

- “há mais de um mês ele vem preparando essa festa de aniversário...  E, logo no comecinho, zero hora do dia D, chega você e estraga tudo!...  Pelo que sei, do carinho que o povo tem para com aquele senhor, isso é imperdoável!”...

Fred se contém, amargurado, agastado...

Adentram na casa, quietos, pé ante pé.  Não podem importunar aos que já dormem.

Pela manhã, inesperadamente, chega o colega paraibano, que disseram estar em gozo de férias.  Larga a mala no corredor, porque ouve um ronco vindo do seu quarto.  Porta entreaberta, vê que um estranho ocupa o seu território.   Aí, qual um despertador, com muita graça, dispara, acordando a todos:

– “OXENTE!...  QUEM É ESSE COMPENETRADO QUE ESTÁ NA MINHA CAMA, UAI?!...”

Fred se levanta, meio tonto, e tenta se explicar, esfregando os olhos e abrindo a boca num bocejo ainda sonolento. 

Recebe, meio encabulado, os votos de boas-vindas do jovem colega de codinome “paraíba” e, porque já é hora, começa a se preparar para o início de sua missão.  Somente a partir desse intranquilo, mas bem humorado, despertar, sente-se, na verdade, como se estivesse em sua casa. 

Sem apetite, recusa a refeição frugal que lhe é oferecida.  Sai, a pé, em direção à agência de sua empresa, um tanto pensativo: 

- “Como contornar a chirinola em que me meti logo na primeira noitada nesta cidade?...  Ir ao cartório e procurar o aniversariante pra apresentar minhas desculpas, talvez não dê certo!...  Às vezes - como dizem -, a emenda e pior do que o soneto!”...

Adentra na agência, já conhecendo metade do seu quadro funcional.  É apresentado aos dois administradores, que o chamam, animadamente, até a gerência.  Lá, sobre a mesa, em papel laminado, uma grande fatia de bolo.

- Você não vai comer todo esse bolo sozinho, vai?   - pergunta o gerente, já pedindo que lhe servissem um cafezinho.

- É comigo que o senhor está falando? -  replica Fred, sem nada entender.

E o gerente esclarece:

- Claro, rapaz!  Um senhor, cartorário aqui em Piracuruca – não sei o nome, mas acredito ser nosso cliente -, esteve aqui logo cedo e trouxe esta fatia de bolo.  Deixou-a com nossa secretária sob rigorosa recomendação.  Disse que é pra o visitante que está fazendo um trabalho aqui na agência.   E o visitante é você, não?!...  E nos convidou para um almoço, hoje, em Sete Cidades.  Fica a 18 km daqui.  É um sítio histórico muito importante que guarda registros de nossos antepassados.  Muito visitado por antropólogos, geólogos, historiadores e pesquisadores do mundo inteiro.  Vamos lá!  Você vai conhecer toda uma beleza esculpida pela natureza, a maior parte em forma de animais petrificados.  O convidador ainda disse que se parece muito com o seu pai...  Quem sabe, ele até já lhe conhece!   Vamos lá, sim, mas – quem me avisa, meu amigo é! - vou logo lhe prevenindo:

Segundo a secretária me transmitiu, hoje ele está completando sessenta anos. 

PREPARE LOGO O SEU DISCURSO DE ANIVERSÁRIO!

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Nota do autor: 
Este conto foi inscrito no 13º Concurso Talentos da Maturidade 2011 - promovido pelo Santander - e hoje, 03/12/2011, está sendo publicado neste RL sob novo título e com ligeiras alterações. 

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Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 03/12/2011
Alterado em 06/03/2012
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