A BONECA DOS CABELOS DE SISAL
Ouvem-se risos e queixumes infantis vindos do único quarto de dormir da casa. Porta entreaberta, Zeza brinca displicentemente com Mabel, sua vizinha do lado direito. Ambas têm oito anos de vida e inocência. Menininhas pobres em cidade pobre. Divertem-se com bonecas feitas de pano, trazidas da feira. O candeeiro, manga de vidro, pavio umedecido a querosene, já está clareando o ambiente, porque é quase noite. Deveria ficar sobre uma banqueta rente à cama, mas Mabel dele se apodera logo que é acesa a chama. Criativa, aproxima a boneca, lentamente, da manga do candeeiro, projetando uma bela imagem escura na parede cinza, quase branca. Um cineminha de verdade. Zeza acha interessante e divertido. Igualmente criativa, mostra que a imagem negra da boneca da parede pode ter os cabelos loiros. E, com um pouco de ingenuidade, aponta, no ângulo esquerdo superior do quarto – pertinho da sombra gigante da boneca – uma braçada de fios de agave “sizalana”, produto altamente inflamável, especialmente quando seus fios já estão desumidificados. Amarrado a uma altura cuidadosamente distanciada da ação das crianças, pende dos caibros do telhado em forma escultural, tal qual a juba de um enorme leão. Desde que, dessa juba de sisal, se aproxime a imagem escura da boneca projetada pela luz do candeeiro, aparece na parede a figura de uma mulher negra de cabeleira loira, quase igual à do cartaz pregado na parede dos cinemas das cidades grandes. É essa a imaginação de Zeza. Mabel, entretanto, quer mais aventura. Abandona o pequeno cinema e insiste por arrancar uma porção dos fios de agave (ou sisal). Sua intenção é mudar, realmente, a cor dos cabelos da sua boneca de pano, de verdade. Desejos conflitantes. Uma pensa na fantasia (só a imagem na parede), outra na realidade. – Não, Mabel! Papai pediu pra não mexer nesse agave. É pra fazer cordas e tapetes – suplica Zeza, preocupada com o que vai dizer quando o pai, ferroviário, retornar de mais uma viagem de trem. – Mas eu mexo, sim! Nem seu pai tá aqui, nem você manda em mim!... – responde Mabel, com valentia, repetindo um provável comportamento aprendido. E corre até a cozinha à procura de uma vassoura e uma faca. Fred, também ainda criança – quatro anos mais velho que a irmã, Zeza –, faz tarefa escolar no corredor, sob a luz de outro candeeiro, fumacento por não ter a manga de vidro. Ainda tenta impedir a busca. Termina indo iluminar a cozinha, rendido pelos caprichos e choramingos impacientes da vizinha Mabel. – Não, Mabel! Já te disse que papai briga comigo! Vai pensar que fui eu quem puxou esses fios de agave!... – Zeza reclama mais uma vez, agastada, porque a amiguinha já consegue repuxar com a vassoura uma parte das fibras. Precisa dizer logo a algum adulto para consertar o malfeito. Mabel insiste em puxar os fios. Zeza, cada vez mais preocupada com o que o pai possa dizer, corre, chorosa e desesperada, em busca da proteção da mãe. Alguém precisa fazer alguma coisa. Dona Yole se encontra em conversa animada na calçada da vizinha, dona Elisa – mãe de Mabel – e dá pouca atenção aos reclamos de Zeza. – Pequenos desentendimentos entre crianças – diz. Dona Elisa concorda e puxa outra conversa. Nesse ínterim, Mabel, que já baixara uma pequena porção de fibras, tenta cortá-las com a faca e não consegue. Apela para o calor expelido pela abertura superior da manga do candeeiro. Segura as fibras com as duas mãos, como se sustentasse os extremos de uma trança de cabelos. Aí, ingenuamente, leva-as, já ressequidas, ao calor do candeeiro, desta vez colocado sobre a mesinha de cabeceira da cama. A princípio – aqui e acolá –, uma fagulha brilha, caminha um pouco e se apaga. São os fios mais salientes, dispersos do conjunto. Mabel vibra com aquela beleza pirotécnica... Mas a festa não durou dois minutos! Num repente, os fios se partem com um enorme clarão. Mabel larga tudo e foge assustada. O candeeiro entorna da mesinha de cabeceira e espalha querosene sobre a cama. Colchão de capim, o fogo se alastra como um raio. Fred corre até o quintal em busca de água da cacimba para apagá-lo. Cacimba rasa. Balde pequeno. Água insuficiente para debelar as chamas, que se estendem. Quase asfixiado, abre a porta da sala e grita por socorro. Seo João Antônio, chefe da oficina de trens, retorna do cansaço de sua jornada. Final dos trabalhos de uma segunda-feira cheia de pequenos problemas. Tão logo avista o fogacho, aciona seo Colaço – encarregado do socorro – e toda a equipe de trabalho, em regime emergencial, para combater o incêndio, prestes a atingir os outros casebres. Latas, tonéis, escadas..., tudo chega às rápidas. Homens habilidosos, sob o comando de seo Colaço, atacam logo a base do fogo. Grande braçada de agave, em chamas, é retirada e arrastada para a rua. Fica ali, tal uma fogueira junina, queimando até o fim. A água, escassa, terá outra serventia. O resto fica mais fácil de controlar e apagar. Paredes e telhado vão sendo umedecidos. Quase todas as cacimbas da vizinhança se esgotam. Final de um estrago que poderia trazer consequências drásticas. Somente algumas telhas e caibros precisam ser substituídos. A cama e a mesinha de cabeceira, desaparecidas nas cinzas. Fora a pequena e única mesa da casa, onde Fred cuidava dos deveres escolares, nada mais se salva. Salvar o quê? Dona Yole agradece a cada um dos que lhe prestaram socorro. Promete pedir a Deus proteção pra todos eles. Dará um jeito de dormir na casa acidentada em rede emprestada, mesmo com o cheiro forte de queimado. Paredes todas molhadas. Telhado, metade aberto, qual cratera de um vulcão. A lua clareando o chão. Lama difícil de remover com uma só lavada. Tudo escuro e muito mau cheiroso. Não sobrou candeeiro. A pedido do chefe da oficina, seo Paulo retorna de viagem no dia seguinte. Solidários, os colegas de trabalho lhe oferecem material e mão de obra. Até um colchão lhe foi doado. Também marceneiro nas horas vagas, improvisa uma cama com madeira igualmente doada. Perde a matéria-prima para confecção de alguns rolos de corda já encomendados. Em nenhum momento perde a calma. Aceita como verdadeiras as explicações dos filhos – Fred e Zeza – sobre as causas do incêndio. Nada obstante ter distanciado deles o material inflamável, reconhece sua culpa de pai ausente. - Vim para dizer-lhe que a culpada pelo incêndio foi sua filha, Zeza – fala dona Elisa, num instante em que dona Yole não está em casa, descarregando sua ira, ao saber que seo Paulo não exemplou (leia-se: não espancou) os seus filhos pelo ocorrido. – Minha Mabel me disse, na hora, que foi a Zeza quem queimou os cabelos de uma boneca muito grande que estava no quarto. Criança não mente. Filha minha, muito menos! – Boneca!?... – Estranhou seo Paulo. – Sim, senhor Paulo! Uma boneca bem grande, negra e de cabelos loiros. Por que é que minha filha Mabel iria inventar?!... E tem mais: sua casa pegando fogo e sua mulher batendo papo na minha calçada, como se nada estivesse acontecendo, como se não tivessem crianças cá dentro... Seo Paulo entende a intenção de sua vizinha, aquieta-se e, imitando-a, prefere acreditar nos seus filhos, na sua família. Domingo da outra semana. Dia de folga para os ferroviários que trabalham na oficina. O lugarejo, situado à beira-mar, é açoitado pelos ventos fortes vindos do norte. Batidas de portas e de janelas. Tem que se fechar tudo... À tarde, dona Elisa larga sobre a mesa um montão de roupas para passar a ferro e resolve, primeiro, trancar-se em seu quarto para uma sesta. Mabel e o irmãozinho menor brincam sob a mesa. Das roupas ali jogadas, pende algum tecido fino e esfiapado. Ela logo se lembra da queima dos fios desumidificados do agave. Não alcança o candeeiro, guardado a propósito em lugar que ela não o pudesse pegar. Encontra o fósforo. Procura e encontra uma vela. Acende-a e começa a mostrar para o irmão a beleza pirotécnica dos fiapos, fazendo-os arder até se apagarem. Não leva muito tempo essa brincadeira. O tecido logo se inflama. Ela, perspicaz, põe a vela na mão do irmão e tenta debelar as chamas. Não consegue. Clama pela mãe, em tom de desespero, e corre, sabendo-a mal humorada. Dona Elisa, irritada por ter sido despertada antes do tempo previsto, abre a porta enraivecida. Vê o fogo e vê o filho com uma vela na mão. Puxa-o para o quarto e trata de espancá-lo, em vez de debelar as chamas. Enquanto isso, as labaredas crescem. Ela evita pedir socorro. Afasta as crianças. A labareda toma conta do corredor. Acha que não precisa de ajuda. Tenta resolver tudo sozinha. Não consegue. Os ventos sopram forte. As chamas assumem proporções desastrosas e atingem mais dois casebres do lado direito. Domingo. A equipe de socorro da ferrovia precisa ser acionada por meio de apitos prolongados de alarme, saídos da oficina. Faz-se o alarme. Chega o socorro. Nada mais a apagar. Mesmo as cinzas vão sendo sopradas pelos ventos até o mar. Dona Elisa, sem se comunicar com um só dos seus vizinhos, muda-se para a casa dos pais, numa pequena cidade do interior. O marido, tripulante de navio mercante, desembarca e, lá, se torna pequeno comerciante. Veja agora, caro leitor, como os passos que se dão na vida são interessantes!... Dezessete anos depois, Fred, o vizinho, irmão da Zeza, se casa com a incendiária, Mabel. Muitas chamas na lua de mel. --------------------------------------------------------------------------- Nota: "SEO" - forma sincopada de SENHOR, preferida pelo autor, em substituição ao axiônimo "SEU" (confundível com o pronome possessivo de mesma grafia). --------------------------------------------------------------------------- Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 02/02/2012
Alterado em 22/01/2017 |