FANÁTICOS, GRAÇAS AOS DEUSES!
Conheci Rúbem, rapagão livre, forte, dinâmico, independente, esportista, inteligente... Fiquei sem notícias dele por uns quatro anos. Acontece. Não somos estáticos. Por sorte, ou por um acaso, encontro seu pai numa agência de banco. Com ar de quem alcançou o pódio, ele me informa que seu filho, único filho, casou e está muito feliz. Ele e sua santa mulher já lhe deram dois netos adoráveis. Continua rodeado de uma porção de amigos – coisa que ele desde garoto soube fazer. Ainda joga futebol nos finais de semana e vai à praia com a família, sempre que pode. Praias de água doce, lá onde ele mora. Como sempre, muito querido e bem relacionado socialmente. Ganhou uma promoção, faz pouco. Ocupa a chefia de importante departamento de uma instituição de seguridade social, na capital de um populoso estado do norte. Ganha bem, para o estilo de vida que leva. A doce esposa é professora no grupo escolar do bairro onde moram. Ambos consideram prioritária a educação dos filhos. - “Tem a vida que eu tanto pedi a Deus pra ele” – diz o pai, soberbo.
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Por conta do seu engajamento na sociedade, Rúbem é convidado para um jantar especial na casa de um amigo indiano, casado com uma tibetana. Nada de aniversário ou alguma comemoração semelhante. Simplesmente, um jantar só para palestrar, jogar conversa fora...
– “Um convite, nada mais (!)” – escuta. Jantar especial, sim, porque os convidadores são os próprios cozinheiros de excepcionais iguarias orientais. Convite irrecusável. Mas a mulher recusa, porque, como professora, tem muitos afazeres, além dos domésticos. Não vê condições de participar de um jantar fora de casa nos dias úteis. Atrapalha seus compromissos assumidos na escola. Ele vai desacompanhado. Beija a mulher e promete voltar cedo. É recebido, na casa do amigo, como um príncipe. Incluindo o casal anfitrião, são sete os comensais. Nenhuma bebida alcoólica. Um cheiro de incenso vem de alguns palitos que se queimam, no jardim ou nalgum recanto da sala. Dois casais trocam ideias sobre suas experiências no convívio conjugal. Pareciam viver agora num verdadeiro paraíso, possível a partir da subserviência feminina consentida. Rúbem - pé atrás - diz pra si mesmo que o bom relacionamento com sua parceira descarta esse servilismo. Serve-se o jantar. Comidas exóticas, exclusivamente preparadas com vegetais. Cozinha chinesa, sim, mas de condimentos extravagantes e bem saborosos. Convivas empanzinados. O tradicional chá quente é servido durante e após a refeição. Na sequência, mais uma hora de conversas rolando sobre a posição geográfica do Tibete, sua autonomia, nacionalidade... Despedem-se. – “Se gostou, volte na próxima semana. Teremos prazer em recebê-lo”. Agradece. Já em casa, encontra a mulher ainda envolvida na conferência das tarefas escolares dos seus alunos. Conta o acontecido. – “Ficou um convite para o próximo encontro” – diz-lhe. Tenta convencê-la a ir na próxima vez, pelo menos para experimentar a diferença de culinária dos povos asiáticos em relação à nossa. A mulher, perspicaz, adianta: – “vais ver que eles querem promover uma excursão à China!”. Não deu outra. Na semana seguinte, a reunião que ficara marcada. O mesmo grupo. Ele pede desculpas – por estar ainda desacompanhado – e ameaça ausentar-se. – “Nenhum problema! Ela virá, quando puder. Mas a sua presença, mesmo desacompanhado, muito nos honra” . Ouviu, agradeceu e permaneceu. – “Vamos continuar nossa viagem!”... As conversas avançam mais interessantes. Fluem, se misturam e se alongam. Comenta-se, desta vez, a história da humanidade. Um dos convivas lê e fala para o grupo que, até o início da segunda metade do século XX, reinava no Tibete uma sociedade escravocrata feudal, obediente a um regime ditatorial teocrático. O clero tinha ampla participação no sistema e oferecia apoio absoluto à aristocracia. A desobediência a essas forças fez derramar muito sangue pelas nascentes dos rios Bramaputra, Mekong e Yang-Tzé-Kiang. Hoje, esses rios estão mais limpos... A partir desse encontro, o grupo decide partilhar as despesas de tantos jantares. O meu amigo faz o desembolso com satisfação. Afinal de contas, está se aprimorando culturalmente. Fica, num pé e noutro, ansiando o próximo “jantar”. Chega o dia. Só irá se acompanhado da mulher!... Ela continua assoberbada de trabalhos escolares. Compadece-se. Telefona para o indiano, dando as razões pelas quais não comparecerá ao encontro dessa noite. O amigo nada responde... Daí a pouco, o grupo, animado, chega à sua procura. Rende-se. Uma prova de que sabe conquistar amigos! Vai, novamente, sem a querida companheira. Outro assunto em discussão. A conversa evolui para religião, religiosidade e sistemas ético-filosóficos, tudo baseado na moral do indivíduo, no respeito ao próximo e na eterna felicidade do espírito. Interessa-se. Leva para casa alguns livros por empréstimo. Empolgado, quer investigar mais sobre o tema. Estuda com profundidade a vida e obras do príncipe Siddhartha Gautama, o Buda (Índia, séc.VI a.C.). Não o vê como um deus, mas como um respeitável guia espiritual, que fugiu do palácio, largando a família e a mulher, para viver na pobreza, celibato e pacificidade. Vida errante, renunciou aos prazeres do mundo para alcançar a meta suprema, o nirvana. Analisa as razões do esfriamento do budismo na Índia (séc.VII) e sua rápida expansão pelos outros países da Ásia. Empreende um estudo profundo sobre as verdades do budismo tibetano e depreende que a doutrina ensina a superar as aflições a fim de atingir o nirvana – que significa o aprimoramento total do espírito, após inúmeras reencarnações. Preso e entusiasmado pelas leituras e concomitantes debates, já não pode perder as próximas reuniões. Fica à mercê das determinações de um líder. Doutra feita, apanha, por orientação superior, livros que o deixam informado sobre o confucionismo: ideologia política, social e religiosa do pensador chinês Koung Fou Tzeu (551-479 a.C.) – Confúcio, pela grafia latina. Doutrina que tem por princípio o ensinamento dos sábios (Junchaio) e a busca de um caminho superior (Tao). O confucionismo lhe leva à constatação de que a base da felicidade dos humanos depende do núcleo familiar, cujo comportamento harmônico se projeta para a sociedade como um todo. Segundo essa afirmação, não cumpre seus deveres sociais quem desrespeita o seu próximo. Rúbem se encanta. Esse, sim, é o sonhado caminho da paz entre todos os seres humanos!... A essa altura, sua cabeça, raspada, gira somente em torno dessas leituras. Tudo muito bonito e envolvente. Ele não tem outro assunto para comentar, no café da manhã, no almoço, jantar, na sala, na cama, nos raríssimos momentos de lazer... Parou de ler jornais. A mulher já não suporta tanta baboseira repetida. Vê o seu pobre marido completamente mudado, obcecado. De tão ocupado nos encontros e nas leituras, não mais passeia com a família e até o futebol deixa de lado. A libido?!... Tudo esquecido! Ultimamente, faltou ao expediente por querer e por dever de completar a leitura de um livro que trata da doutrina Bön. Vê que se refere a uma religião mais purificada. Originada no Tibete, ela tem como principal assento cultural o Monte Kailash. Nesse mesmo livro, que contém os nove principais caminhos da doutrina, estuda os regulamentos monásticos do caminho do monge e os requisitos para atingir a grande perfeição. Sonha, somente sonha, tornar-se um guia espiritual... A mulher reclama do seu desinteresse pelo trabalho. – “Não pode estar faltando sem uma razão justa! Lembre-se de que você é o chefe!”... ...“Precisa voltar a ser mais responsável, pelo trabalho e pela família!”... ...”Também, não pode deixar para segundo plano sua masculinidade, a força criativa e reprodutiva que está dentro de você!”... Enquanto isso, sem dar ouvidos aos reclamos sussurrados da mulher, carrancudo e sisudo, detém-se no estudo comportamental do atual líder espiritual e temporal da comunidade tibetana – Tenzin Gyatso – atual e décimo quarto Dalai Lama. Comentará esse assunto na próxima reunião. A propósito da reação da companheira do lar, paradoxalmente, tudo que tem lido leva-o a uma relação de similitude contida em todas as religiões: evidenciam o amor ao próximo, a harmonia e unidade familiar e o aprimoramento espiritual. Tira férias. Passagem para a China já adquirida. Não se sabe se viajou sozinho. Pretende voltar com outra cabeça, mais seguro de sua concepção a respeito dos destinos da humanidade. Conviverá com as raízes ético-filosóficas arraigadas do outro lado do mundo... Não beija a mulher. A mulher o beija. Viaja. Só uma mochila às costas. Só...
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Oito anos depois do último contato, reencontro o pai do meu amigo na mesma agência bancária. – “Como vai o Rúbem?” – “O meu filho?...” – Ergue a cabeça, com ar de indignado. E me conta o que de fato aconteceu com o seu filho querido, tão cheio de vida, formado, bem informado, equilibrado econômica, financeira e emocionalmente; amigo de todos e muito entusiasmado com as coisas boas da vida; responsável pela família que tanto queria. Diz-me que o filho está na Ásia. Visitou o Tibete, a região mais alta do mundo – de alguma forma, ainda territorialmente alienada à China. Um lugar que tem mais de um milhão e duzentos mil quilômetros quadrados de área e cerca de 2,2 milhões de habitantes. Lá ficou... É que ele, ao passar por Pequim, capital da China, tomou conhecimento de uma técnica usada na construção dos templos dos monges tibetanos. Consiste em se elevar enormes blocos de pedras independentemente da ação da gravidade. Ele considera, a princípio, estar na região mais alta do planeta. Todavia, se entusiasma quando descobre que os monges utilizam um complexo sistema de instrumentos musicais dispostos ao redor do bloco de pedra. O grande Mestre comanda o concerto. Quando o arranjo atinge certa frequência, o bloco começa a flutuar. Ao atingir determinada altura é arrastado para a posição planejada. Cessa o concerto. Informa-se de que a técnica não é recente. Cientistas alemães confirmaram, ainda na primeira metade do século XX, que um campo sonoro vibrante e condensado pode anular o efeito da gravidade. O engenheiro aviador – Henry Kjelson – descreve esse fenômeno no livro The Lost Techniques (as técnicas perdidas). Rúbem quer confirmar tudo. Faz amizade com os monges tibetanos. Tem muito o que revelar ao mundo. Dedicar-se-á, com afinco, ao estudo dessas forças de anulação dos efeitos da gravidade e tentará repassar subsídios para os estudiosos estrangeiros que não têm chance de escutar ou de observar tais fatos mais de perto. Por amor a uma nova doutrina, a uma filosofia e, agora, a uma sedutora causa científica, despreza o seu trabalho estável e de carreira em instituição do seu país; esquece os amigos e a boa vida de classe média... Rejeita, sem remorso, o que mais o budismo, o confucionismo e as demais doutrinas estudadas enaltecem: a família (*). - “Rúbem, hoje fanatizado, não é mais Rúbem. Entregou-se à vida austera de monge tibetano” – completa o pai, magoado, inconformado com os deuses.
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Um caso real, ilustrado com dados históricos e geográficos pinçados do Google. Respeitada a decisão do amigo Rúbem, a intenção do autor é apontar os passos de uma técnica sub-reptícia universal, que inicia sua conquista suavemente como uma brisa, se avoluma, conforme a anuência da vítima, depois destrói sua personalidade, tal como a força devastadora de uma tempestade. Contamina, como uma doença de massa. Tempestades ou doenças de massa não respeitam níveis culturais, valores ou status de suas vítimas.
Em outras palavras, o indivíduo ao se deixar influenciar - cedendo, pouco a pouco, espaço no seu campo de liberdade -, chegará ao extremo de perder sua própria personalidade e assumir, no todo, a personalidade do outro (o guru, o pseudo-líder, o invasor, o influenciador...). Seus valores tradicionais são esquecidos ou substituídos pelos valores que o invasor (ou influenciador) obriga. É o ponto limite do fanatismo. O fanático, uma vez desprovido da sua personalidade, não só abandona os amigos, a família, os entes queridos..., como, em certos casos, pode exterminá-los, obedecendo, unicamente, ao comando do seu influenciador ou divindade. Pode, também, ser induzido à traição, à prostituição, ao crime, ao vício, ao suicídio... Abandonados os seus valores tradicionais, perde a noção de valor de todas as outras coisas ou pessoas. Roubar, em prol de sua nova causa, é tão simples quanto matar policiais em jogos de videogame ou queimar moradores de rua que adormecem nas calçadas. Os exemplos estão escancarados pela mídia: - Todo viciado começa a suas jornada de vícios atendendo a um simples convite. - “Uma vez só... Só pra experimentar!...” Depois, a tudo perde, em favor do vício. Chega ao absurdo de praticar latrocínio ou homicídio, a fim de pagar o seu próprio infortúnio àquele que o desgraça. - Seitas e mais seitas malucas de cunho radical, grupos abertos ou fechados, conseguem facilmente encher os seus templos de prosélitos. Falsos pregadores geram fanáticos, que se transformam em falsos pregadores. - O pastor americano, Jim Jones, cria numa comunidade (ou colônia) das selvas das Guianas uma seita denominada “Templo dos Povos” – e leva 913 fanáticos a ingerir cianureto com suco. Suicídio coletivo que vitimou 900 desses despersonalizados seguidores. Eram pessoas capazes, caráteres formados, famílias bem estruturadas, mentes sãs... Deixaram-se envolver por filosofia vã. - Facções políticas e ideológicas, campeiam perigosamente com suas belezas e suas cores pelos corredores das escolas e universidades. - Novas e inúmeras denominações religiosas imperam, movidas pela sedução da cura e pelo fácil faturamento. - Entidades suspeitas, mitológicas, de cunho espiritual ou filosófico, organizam-se informalmente. - Grupos preconceituosos neo-nazistas, racistas..., sacrificam, a pauladas, suas vítimas pelas calçadas no silêncio das madrugadas. Todos usam o mesmo método de persuasão: convite, renovação, cobrança, exigência, imposição, sedução, dominação . . . Autênticas fabriquetas de mentes alienadas, fanatizadas... Enfim, importa alertar que, a partir de um simples e “desinteressado” primeiro convite:
almas se perdem;
casamentos se desfazem; famílias se desestruturam; mentes brilhantes se ofuscam; mentes ofuscadas enlouquecem; memórias se apagam, se esquecem...
Mente alienada? Se você permite,
basta um convite. (Fernando A Freire) ---------------------------------------------------------------
(*) Importa mencionar que o Confucionismo e o Budismo são doutrinas ou sistemas filosóficos orientais, tradicionais, que buscam o caminho da sabedoria e da liberdade do sofrimento. Esse caminho passa pela pedagogia, política, religião e moral. Logo, não se deve atribuir a tais doutrinas o endereçamento para o mal. O que o autor pretende dizer é que elas são, muitas vezes, utilizadas como iscas para seduzir e desviar pessoas para objetivos outros, suspeitos ou ilícitos, não comprometidos com o bem ou a verdade.
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Enviado por Fernando A Freire em 21/03/2012
Alterado em 26/03/2012 |