Dona Dolores vive e depende, hoje, da minguada pensão assistencial do governo, conseguida com as bênçãos de Deus. Pensão - é notório - ainda medíocre. Mesmo assim, bem melhor do que a época em que precisou pedir esmolas pra sobreviver.
Irmãos, teve dois. Relembra-os com saudade e supõe que os perdeu. É que num dia, tarde fria, eles embarcaram de navio para a guerra. Início da década de quarenta. Segunda Guerra Mundial. Foram lutar por uma causa desconhecida. Restou a lembrança de seus sorrisos forçados - de aventureiros - no momento da partida. E a desesperança: impressão de não mais abraçá-los.
Soube, mais tarde, que um navio imergiu em alto-mar, ainda em águas brasileiras, carregado de "heróis".
Os pais, de tanto esperar os filhos, ao menos notícias, morreram depressivos. Vítimas jovens de uma guerra distante. Aí, dona Dolores ficou só. Uma adolescente só, a ver navios. Circunstância que lhe obrigou a mudar-se, de lugar e de vida.
Cresceu noutro rincão e teve um filho.
De sua geração - conta - poucos jovens se instruíam. Semiletrada, sabia, quando muito, assinar o nome, somar e subtrair números. Estava pronta, assim, para o exercício das atividades braçais domésticas, predominantes à época. Homens trabalhavam na estiva ou nas oficinas. Mulheres, no corte e costura, cozinha ou lavagem de roupas. Ela, mulher, doutra coisa na sabia.
Foi morar na periferia de uma cidade maior e desconhecida. Precisava autossustentar-se. Não a aceitaram para serviços domésticos por ser de origem desconhecida. A guerra lhe arrancara o tronco da família. Mas precisava sobreviver.
Jovem e de corpo esbelto, prostituiu-se. Guerra é guerra.
A clientela crescia. O filho também. Temia que, mais adiante, ele viesse a repudiar sua condição de prostituta. Passou a atender seus clientes somente no cabaré, à noite.
Só não tinha com quem deixar o filho, recusado pelo arraigado preconceito dos convizinhos. Com remorso, como se o enganasse, deixava-o sozinho na casa, dormindo, até seu retorno no pé ante pé das madrugadas silenciosas. Única alternativa. Em jogo, também, a sobrevivência de um inocente de quatro anos.
Chegam as festas de fim de ano. Fogos de artifício explodem e se espalham nos céus durante um quarto de hora. O filho acorda com o ruído incomum dos festejos. Supõe-se que se tenha apavorado por não ver a mãe ao seu redor. Busca uma saída. Qualquer saída...
Naquela madrugada, dona Dolores encontrou a casa vazia, janela aberta, escancarada. Quem sabe - pensou - deixara-a inadvertidamente semiaberta. Um tamborete ali perto pode ter facilitado o acesso do filho à rua. Seus berros, pedindo a proteção da mãe, certamente se confundiram com o espocar do foguetório. Culpada, retornou às ruas, percorrendo-as apressadamente. Ansiava ouvir o choro do filho, chamando-o insistentemente pelo nome.
Busca frustrada dos dois. Somente desencontros.
A vizinhança em nada colaborou. Puniu-a como mãe irresponsável e devassa. Para aumentar seu desespero, soube da presença de ciganos aboletados na cidade vizinha, daqueles que - segundo lhe disseram - fazem tráfico de crianças. Todas as investigações que fez, sozinha e até sem ajuda da polícia, abortaram com o tempo.
Mudou de vida. Mudou de lugar e de lugares, morando nas praças e sob as pontes, até mendigando, nos cabarés, nos bares e nos lares. Chorava e orava. Mas só orava pra pedir a Deus pra lhe mostrar o filho, seu único bem na terra, certamente sofrendo por sua culpa.
Agora, já octogenária, na fase mais adiantada da vida, visão turva, audição comprometida, recebe com surpresa, em seu barraco improvisado, a visita de um suposto amigo. Pra melhor dizer, ele é quem tenta se fazer seu amigo. Traz-lhe pão dormido e algumas frutas estragadas. Limpa-as e põe-nas à mesa - um caixão improvisado - junto ao pão assado. Deseja o que nunca fez: uma refeição a dois. Diz-se frustrado por desconhecer seus pais ou parentes. Não tem uma história pra contar. Descobriu-se na rua, onde sempre viveu. Muda de cidade quando deve, quando pedem ou quando pode. Não sabe o que é ter ou ser amigo. Aproximou-se dela, dona Dolores, por considerá-la mais carente do que ele próprio. Sim. Carente de coragem para enfrentar o preconceito das pessoas. Carente de condições físicas para caminhar, ao menos no âmbito do cabaré. Carente das amizades inesquecíveis do passado, em especial dos irmãos, dos pais e do bebê, ausências que lhe alimentam a saudade e traumáticas lembranças. Ele quer ajudá-la no que for possível, como a uma mãe. Só não sabe de que jeito!...
Dona Dolores sente crescer um amor, quiçá maternal, pelo amigo - quase sexagenário - que considera um enviado de Deus. . .
Antevéspera do Natal.
A geriatra que certa vez prestou assistência gratuita a dona Dolores, por um divinal acaso, encontra aquele moço - o enviado de Deus - catando papéis na rua, empurrando uma carroça improvisada.
Para o carro e chama-o.
Desprendidamente, oferece-lhe uma cesta contendo, entre outros alimentos, pão e vinho. Um gesto cristão que não significa apenas a doação de um bem de consumo. Pão e vinho fazem parte de um ofertório a Deus. E é Ele que, através de mãos abençoadas, os destina aos filhos mais carentes, de amor e de tudo.
Dona Dolores e o seu divino amigo, hoje, vivenciarão, pobremente mas com profunda alegria, o grande Natal de suas histórias:
Ele, por desconhecer suas origens, celebrará a confirmação de sua primeira grande e verdadeira amizade.
Ela, por encontrar no abençoado amigo o filho que de há muito procura, agradecerá ao Senhor a dádiva desse feliz reencontro com a vida e com a paz.