Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

O ASSALTANTE MÍOPE
 
 
Século passado.  Início da década de sessenta.  Pirilampeiam os primeiros aparelhos de televisão nas cidades grandes.  Prenúncio de almejado desenvolvimento cultural na região Nordeste.
 

Aberto a inovações, talvez de olho nos votos, o recém-eleito prefeito de um lugarejo portuário, vizinho à capital do estado, alardeia que arrastará o progresso tecnológico para sua terra.  Compromisso de campanha.  E arrasta, sim, ao seu modo. 

Instala, como primeiro ato administrativo, um enorme televisor bem no centro da única pracinha.  Pracinha do quadrívio.  Assim conhecida porque nela desembocam as quatro principais ruas do vilarejo.  Local estratégico.  Cômoda visualização por parte do distinto eleitorado.  Segundo a oposição, entretanto, apenas um pequeno circo, armado e iluminado, para divertir uma leva de desocupados. 


De começo, sinal intermitente, apesar da esguia antena com três varões, um para cada canal.  Jeito de varal.  Aparência de mastro de barcaça, fincado num recanto do jardim da praça.  Risível benfeitoria.  Completa dissintonia com o que esperam os eleitores – vulgo telespectadores – munícipes. 

– “Que é da imagem do mundo lá fora?  Que é do noticiário... ?” – Toda a população se pergunta, decepcionada.   Promessa de campanha abortada.  Somente listras em preto e branco, refletidas e repetidas na tela suspensa. 

– “E a segurança?”   –  Sim!...  O patrimônio do povo está garantido: aparelho acorrentado a um busto, de há muito apoiado num pedestal à altura do peito. 

– “Busto de quem, assim tão desgastado pelo tempo?”  –  De algum ilustre conterrâneo do passado – acredita-se.  No presente, por servir de escora para uma ferramenta inovadora, virou objeto de arte, de utilidade pública.   

– “Antena parabólica?”  – Não!...  Ainda não há satélites em sobrevoo. 

O prefeito arregaça as mangas.  Mexe na antena à cata de melhor sintonia dos canais.  Buscando alguma imagem na tela, Fred colabora com a operação:  

“Mais à direita!”... – “Um pouco mais à esquerda!”...  

E o prefeito, peremptório: – “Direita ou esquerda, não importa, Fred!  O que preciso mesmo é de uma boa imagem!”...  

– “Então, se ligue, excelência:   fixe a antena de cima com a seta voltada para a vila ferroviária;  a do meio, com a seta para o cais do porto;  a de baixo, com a seta para os casebres dos pescadores”...  

Difícil e suada captação de ondas magnéticas, ou de votos.  Imagens esporádicas, tronchas, invertidas, borradas, desfocadas...  Quase não se veem.   Som igualmente desfalcado... 

Os amigos de Fred se cansam e dão-lhe as costas.   – Abandonaram-no?   – Não!...  Simples desmotivação para irem à pracinha:
                               
– “Modernidade de quê?...” 


Com o tempo, se a tal novidade tecnológica prometida demora a chegar, não só os amigos... 

Meia-volta para a costa marítima.  Areias alvas e finas.  Beira-mar.  Ali escutam melhor a quebrança das ondas nos penhascos do fortim.  Também as potocas gostosas dalgum pescador.  Quase todas, aventuras de alto-mar.  Deitam-se nas areias.  Papos pro ar.  Veem o requebro de estrelas no céu e suas imagens na superfície das águas.  No ar, nuvens traçando, caprichosamente, modelos amorfos, indefinidos, inimitáveis... Intento de esconder a brancura das noites luarentas.  TV, pra quê?...  

Fred sente a distância do seu grupo de amigos, mas permanece firme e atento às raras imagens virtuais do novo aparelho.  Liga-o.  Desliga-o.  Horários pré-estabelecidos.  Cumpre ordens.  Segue regras.  Os novos ruídos, que não vêm do mar, também o incomodam.  Críticas ao prefeito:  – “Serviço de má qualidade”... 

Ruídos e críticas passam pelo seu crivo e se dispersam.  Afinal, precisa garantir o humilde e moderno emprego.

– “Que é dos telespectadores?” – Fred se inquieta.  Sensação de isolamento compulsório.  Dias quentes.  Noites frias.  Pavilhão aberto, sem paredes para proteger-se do vento ou, ao menos, recostar-se. 

Muda de canal.  Surpreende-se ao ver na tela um programa assaz educativo.  – “Será... ?!” 

Uma entrevista.  Um cientista social...  – “Canal?”  –  Nem lembra mais!  

Informações construtivas.  Imagens meio distorcidas, mas sem descaraterizar a substância da mensagem...

– “Pô!... O que é censo demográfico?!...”  – Pergunta-se.  Assusta-o a superpopulação do planeta...  – “... e no Brasil?!”  – Permanece atento.  Perde o sono quando se descobre parte de uma população de setenta e um milhões...  – “Deus!  No início da próxima década, mais vinte milhões de almas habitando neste país!”  Projeção deveras preocupante, embora de pouco crédito.   E, cada vez que fala, o entrevistado excita a apreensão de Fred:

“Como garantir a manutenção dos empregos no próximo século, especialmente por se encontrar o mundo no limiar da era da automação?...  O homem, cada vez mais, tem participação mínima na produção de bens e serviços...  A máquina o substituirá...  O consumismo será exacerbado...  Mas, quem lhe pagará as contas?”...  E prossegue com uma ilustração de final apavorante:

– “ ...teste laboratorial.  Um casal de ratos numa gaiola.  Forra o fundo da gaiola um bom pedaço de queijo – alimento preferido por esses animaizinhos.  Delícia de começo de vida a dois.  Num cenário de harmonia, passeiam, brincam, namoram...  e se alimentam.  Vinte e dois dentinhos de nascença.  Provam que não os têm em vão.  Aí, a ratinha engravida.  Vida.  Vinte dias de gestação. Reprodução da espécie.  – Por que não?  Ambiente propício.  Feliz início...  – Caramba!...  Ela pode ter uma gestação por mês!  Seis a doze filhotes por vez!  Filhotes fêmeas – upa! alcançam a maturidade sexual com três meses de idade!...  Tamanha fertilidade faz crescer a prole, progressiva e ininterruptamente, enquanto o queijo só diminui, a cada dia.  Alimento já escasso.  E espaço?...  Nada mais resta.  Devoram até o amor que os uniu em tão feliz começo.  Pobres ratos!  Matam-se uns aos outros. Ânsia da morte, no afã da sobrevivência”.

No melhor da apresentação – como esperado –, linhas horizontais agitadas se sucedem, afastando da tela a imagem turva da gaiola, vazia de alimento e de paz. 

Considerações finais da entrevista abafadas por inoportuno chiado.  Fred, de alguma forma satisfeito, julga ter assimilado o bastante.  Infere que a amostra não traz o propósito de igualar os humanos aos ratos.  Acredita mais num sinal para se estar vigilante.  O crescimento populacional, se desenfreado, trará consequências assim desastrosas, inimagináveis...  Para a humanidade leiga, um estridente alerta, um desafio à vida.  E o prenúncio de que a extrema e crescente pobreza do homem será o começo de tudo, ou o fim.  


– “A extrema pobreza existe?”   –  Sim, Fred, tanto quanto a miopia dos que se julgam incluídos no outro extremo.  Não dá relevo a essa questão quem já esqueceu de amar ao outro – e de amar-se.  Eis aí o fulcro da extrema pobreza.  O desamor é o começo do desastre, porque advém da irracionalidade.  Sem amor, seres humanos se reduzem, perigosamente, à condição de meros reprodutores e roedores.
 
II
 
Fim de semana seguinte.  Dois espectadores nunca vistos no pavilhão.  Um, de feição jovem e de baixa estatura, porta lentes de grau elevado.  Outro, já idoso, estatura mediana, pelo menos tem boa aparência.  Fred se aproxima e os auxilia na mudança do canal.   Ficam ali, os estranhos, quase colados à tela.  Nenhuma programação interessante.  Calados, analisam detalhes da parte física do televisor.  Depois, saem de mansinho.  Nada de  agradecimentos, nada de despedida.  A pouca educação não é ainda preocupante.

No outro dia, logo cedo, uma má notícia se espalha: 

– “Roubaram o televisor do prefeito!  Não, da pracinha!”... 

O busto também.  Corrente de aço.  Cadeado inviolável.  Segurança inquestionável.  Fred sem explicações:  – “...meros roedores”.  Mais um desempregado.
 
III
 
Bravo!  Busto encontrado no cemitério mais antigo da capital – metrópole vizinha.  O prefeito se desloca, com sua equipe, a fim de resgatá-lo.  Uma pista para localizar o seu anexo acorrentado  – o então muito valioso televisor.
 

Procura a administração do sepulcrário, que, estranhamente, não libera o objeto furtado. Estarrecido, o prefeito encontra o busto já cimentado sobre um velho túmulo, como se – quem sabe! – tivesse retornado ao seu lugar de origem. 

A população do vilarejo, sabedora do ocorrido, recusa-se a aceitar de volta aquela escultura fúnebre.  Também, na eleição seguinte, recusou o prefeito, que perdeu para as urnas. 

Fred, sem esconder certo arrepio pelo desfecho, reflete:  

– “Por mais ilustre que um homem tenha sido, um dia ele será completamente esquecido.  Há de chegar o inadiável momento de sua morte definitiva.  É aquele em que sua última imagem é ridicularizada, ou destruída, e ninguém aparece pra lhe salvar a dignidade de vida”.

O ex-prefeito, apesar dos pesares, continua sensível às necessidades do seu povo.   Benevolente, influente, eloquente...  Consegue emprego para Fred na capital do estado.  Menor aprendiz numa instituição financeira estatal.  Aplausos!... 

– “Esse homem, sim, merece ser reconhecido e homenageado, se não enquanto vivo, ao menos no porvir, com um busto seu na pracinha do quadrívio”.  Gesto de gratidão do mais novo bancário.   
 
IV
 
  A carreira de Fred acompanha o avançar da empresa e do tempo.  Mais tarde, transfere-se para uma metrópole de maior influência no país.  É designado para trabalhar nos computadores de grande porte – tipo “mainframe” – recém-chegados à empresa.  Uma nova função decorrente da automação.  Turno da madrugada.  Preparação e remessa de relatórios para as agências não interligadas ao sistema.  Expediente ininterrupto, num clima em que errar é desumano.  O menor erro soa como a suspensão da energia para toda uma região.   

Oito e trinta da manhã.  Final do expediente.  Sono inconciliável.  Mesmo assim, carona – permanente – cedida e assegurada aos três colegas de sua equipe de trabalho.  Deixa-os numa pracinha movimentada do bairro vizinho.  Mantidas as devidas proporções, lembra muito a pracinha do quadrívio.  Dali, todos tomam seus destinos.  

Fred, enfim, retorna a casa.  Tenta aliviar o cansaço.  Nem sempre consegue.  Sabe que ainda cumprirá quatro horas de aula na faculdade, à noite.  Para esse fim e por prudência, prefere deslocar-se em transporte coletivo.  Uma rotina de dois anos seguidos, sem traumas.     

 
V
 
São quase onze horas.    Noite quente.    Última aula
do turno na faculdade.  Fred toma um ônibus de volta a casa.  Um moço senta ao seu lado e puxa conversa.  Corresponde.  Chegam à conclusão de que “ninguém é assaltante porque deseja sê-lo”...  Lembra o exemplo dos ratos que necessitaram matar-se uns aos outros...  Primórdios da televisão em seu vilarejo...  Tudo bem!  Belo papo!  Aproveitando-se do ensejo – o melhor dos ensejos – seu companheiro de viagem abre o fecho ecler de uma bolsa,  tipo pochete, e lhe aponta uma arma.  – “Calibre?”  – Não conhece.  Só lembra que, sem ninguém perceber, entrega-lhe o relógio, óculos, caneta, aliança e a carteira de cédulas.  Na carteira, algum dinheiro e todos os documentos, pessoais e do carro.  Não reage.    Pouco a pouco, refaz-se do susto. 
– "Como registrar a ocorrência, tão de imediato, àquela hora, num posto policial?  No dia seguinte, sim, após a canseira do trabalho".   

Chega a casa meio desapontado.  Nada diz à mulher, pra não amedrontá-la.  Beija-a.  No quarto, beija também as três filhinhas dorminhocas.  Consulta o relógio da cozinha.  Quase uma da madrugada. 

– “Ei!... Que é da aliança?” – Dá uma desculpa e sai, quase correndo.  Toma o carro, mesmo sem os óculos e documentos.  Ruma ao trabalho.
 
VI
 
Não encontra tanta dificuldade para a execução dos serviços porque muitos procedimentos já os tem de cor.   Pede a algum colega para acessar e lhe repassar as mensagens do console.  Tudo corre bem até o final do expediente.  Confere o que pode.  Sabe que, ali, qualquer erro é imperdoável... 

Acaba o expediente.  Já fora do ambiente de trabalho, o calor e o sol forte de frente ressecam suas últimas gotas de energia.  Os três caronas conversam algo que não lhe inspira qualquer interesse.  Sem óculos, preocupa-se somente com a grande afluência de pessoas e veículos nas ruas que levam à pracinha. 

Deveras incomodado pela visão limitada, procura um alvo – ou um vulto – que lhe dê segurança.

À
sua frente, uma jovem dirige um fusquinha amarelo.  – “Opa!”  –  Segue-a.  Melhor seria:  segue-o.  Percebe que ela transita pelos exatos meandros do trajeto que ele sempre faz.  Sabe que, acompanhando-a de perto, dentro de alguns minutos encontrará a almejada pracinha.   E vai.  Seta do fusquinha para a esquerda – e ele: esquerda.  Seta para a direita – e ele: direita.  Está crente de que nenhum dos colegas vai descobrir sua deficiência visual.   Aí, um pouco mais adiante:

–  “Ai, ai, ai ! ! !” . . . – Resmunga.

– “O que é isso, cara, você está maluco?!” – Bradam em uníssono os três caronas, sem entender o porquê daquela situação constrangedora.  Fred entra e estaciona o carro na garagem alheia.  Sem ação e sem visão, escolhe – mas não consegue – algumas palavras para pedir desculpas aos colegas e à pobre e aterrorizada mocinha, que já não se encontra na garagem.  Ela, que, de há muito, vem observando o carro de Fred perseguindo-a, quase colado ao para-choque do seu, não quer conversa...   Foge em disparada e recomenda na portaria do prédio o bloqueio dos portões de entrada e saída.  Pior:  chama a polícia com urgência.  Toma um calmante.  Liga para o pai.  Pede socorro...  

O atendimento policial se faz de imediato:

– “Polícia, polícia!...  Mãos no capô do carro, rápido, rápido, todos!”  

Averiguação dos documentos, pessoais e do veículo.   Fred nada tem.  

– “Eu explico, eu explico...  É que ontem à noite...”     

– “Não adianta, ó malandro!  Sem documentos, vai se explicar na delegacia”.
 
VII
 
 –  ”A delegada está em reuniãoAguardem aqui nesta sala”.

Sala escura, empoeirada e cheirando a papel envelhecido.  Num recanto, duas poltronas rasgadas e mofadas pelo tempo.  Os quatro – detentos provisórios – ocupam-nas num abrir e... 

Fecham os olhos, fatigados e desdormidos.  Depois de os três inocentes jurarem que jamais entrarão no carro de Fred, entregam-se ao sono até quase a hora do almoço.

Entram na sala a delegada e a jovem denunciante, que foi logo reconhecendo e apontando Fred como o frustrado “assaltante”.     

De repente:

– “Ai, meu Deus, um rato!...  A humanidade vai se acabar com um surto de leptospirose...” – Alarmou a delegada, desesperada.   E dirigindo-se a Fred:

– “Pega esse cassetete aí do lado e dá uma cacetada nesse rato desgraçado...  Ele acaba de passar em teus pés...  Faz alguma coisa... Vai!...  Acorda!...” 

E Fred, que nada via:

– “Que cassetete?...  Que rato?...” 

O ratão escapa, obviamente, e a delegada, intrigada, constata a carência visual do acusado.  Pouco a pouco, seus nervos voltam ao normal.  Inicia o interrogatório. 

Fred se adianta para justificar a ocorrência.  Todos ouvem sua breve e sonolenta explanação...

Depois da educada e compassiva escuta, largam uma guardada gargalhada, estridente e solidária:

– “Vai dormir em casa, ó ASSALTANTE MÍOPE!” – Sentencia a simpática delegada. 
                                                                           

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Nota:  Com este texto, agora de final ligeiramente modificado,  o autor concorreu ao prêmio TALENTOS DA MATURIDADE - 2013, promovido pelo Santander.
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Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 06/11/2013
Alterado em 13/11/2013


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