TE AMO, PAULINHA !
Catador de papel vê tanta coisa atirada ao lixo, no seu dia a dia, que tem vontade de juntar tudo e reutilizar em casa... Em casa?!... Em sua casa?!... Que casa, Zemaré? Você precisa se convencer de que é catador e morador de rua... Onde está a sua mala? Onde fica seu guarda-roupas? E sua cama? E seu fogão?... A cata de papel – manhã, tarde e até altas horas da noite – lhe prende e lhe obriga a estar nas ruas, sempre. E parece que até lhe rende alguma coisa... - quando rende. Pelo menos o dinheiro do almoço do dia seguinte. Então, um ponto positivo pra você, Zemaré: você come na rua, honestamente, com o dinheiro do seu suor de cada ontem. Dorme na rua - sua pousada ampla - com relativa tranquilidade, estirado sobre os papéis que apanhou hoje e que até lhe servem de lençol. E se chover, cara? Ah, sei!... Corre pra debaixo de um viaduto ou de uma marquise que ainda não estejam ocupados. Se não conseguir vaga, nada feito. Espera que o Sol se alevante para pôr o papel molhado a secar. Seu trabalho depende do Sol, é o típico trabalho de Sol a Sol. Na verdade, a chuva lhe tira o sono e o sossego - isso é o de menos. O ruim é que lhe tira a grana. Quase a gente não vê sua agonia - ou faz questão de não ver - através de nossas janelas envidraçadas...
“Peraí!”... “Aquilo é uma caixa de joias!”... Pegue-a, Zemaré, você se interessou por ela, mesmo sabendo que está vazia. Está abandonada no lixo, sim, e quem é catador de papel é catador de lixo. Qual a diferença entre essas duas atividades - catador de papel e apanhador de lixo -, se ambas aparecem nas estatísticas do governo como se empregados fossem?... Nessas estatísticas não há espaço para sub-empregados, como é o seu caso, Zemaré... Pegue-a se quiser, ou esqueça-a de vez. Ora, se você não tem onde guardar nenhum dos seus pertences, nem mesmo sua roupa esfarrapada, onde pretende guardar essa bela caixinha? Bela, sim! Pelo menos, já foi bela. Verniz escuro na parte externa e interior forrado de um veludo cinza, embora pelo tempo desbotado... - me diga uma coisa, Zemaré: você acha que vai encontrar alguém que lhe dê algum trocado por essa coisa velha, ainda por cima com a fechadura enferrujada?!... Sim, você me aponta e daqui estou vendo uma pequena abertura central onde por algum tempo ali se guardou um anel. E é isso o que lhe interesssa?!... Sabe lá que anel esteve aí, Zemaré, se de diamante, de ouro com brilhantes, de noivado?!... Quiçá, de um casamento não realizado... Um anel que não retornou mais pro seu cantinho macio e seguro - esse cantinho que você me amostra... Quem sabe, presenteado por um velho amor que um dia o valorizou, depois partiu e nunca mais voltou!... Aprenda, Zemaré, os amores mais que perfeitos e mais que lembrados são exatamente os amores do passado!... Por quanto tempo essa caixinha relembrou esse encarquilhado amor, hein!?... Alguma desesperançada a atirou no lixo, sim, acreditando ser ali o final de tudo. Mas você, Zemaré, se apossou dessa caixa, limpando-a com carinho, com jeito de apaixonado, como quem sonha acordado... Não, não precisa esconder nada de mim! Você sabe que há um vidro transparente e inquebrável entre nós. Eu vejo tudo. Ah, bom! Agora percebo que há uma frase gravada na parte frontal dessa "sua" caixinha: “Te amo, Paulinha”. Ao meu ver, essa frase não quer dizer nada demais, mas daqui eu detecto seu coração acelerado!... Belo! Está lembrando alguém que você ama, cara?!.. Então, viva o amor! Até pensei que, pela vida ruim que levam, os catadores de papel nunca se apaixonassem... Agora, sim, está tudo explicado. Paulinha não é aquela sua namorada que morava na outra rua e, nas noites mais frias, vinha dormir agarradinha com você?!... Eu via, sim! Ficavam os dois lá na praça, embolando prum lado e pro outro, empacotados de papel. Bateu a saudade dela, né?!... Hoje vai fazer as pazes com ela, né?!... Vai, cara! Vai aguar essa planta que a gente cultiva pra toda a vida, e que a gente chama de amor! Leva pra ela esse teu suado presente. Igual a todas as mulheres, tenho certeza, a sua Paulinha vai se sentir muito feliz. Que sejam felizes, por toda a vida, vocês dois! Sem dinheiro no bolso e sem almoço, Zemaré entra no supermercado onde sempre apanha papéis e caixas de papelão descartadas. Os funcionários da Casa já o conhecem. Ufa!... Vê, ao lado da atendente, uma porção de rechonchudos e apetitosos chocolates. Pelo menos dois deles ficariam bem na caixinha de Paulinha. “Ela vai adorar”... Pergunta o preço. “Até baratinho” – diz – mas não tem dinheiro. Vai à calçada pedir uns trocados aos passantes. Ninguém entende sua necessidade imediata, nem sua aflição de amante. Quando o semáforo fica vermelho, já desesperado, corre entre um carro e outro, com a mão estirada. Nada lhe dão. Todos têm medo de baixar suas vidraças. Desiste. O sinal verde se abre. Na mesma carreira que imprime entre os carros, entra novamente no supermercado e surrupia os dois chocolates que seus olhos haviam marcado. Continua no mesmo embalo, ajustando-os aos espaços da caixinha de Paulinha. Num piscar de olhos, chega à rua onde ela perambula. Chama-a. Ela nem sabia ler, mas ele leu para ela: “Te amo, Paulinha!”. Abraçam-se com muito amor, dessa vez desembrulhados dos papéis e papelões que só cheiravam a bolô. Bem que esta história podia parar neste ponto!... Mas a realidade de nosso país nos obriga a ir mais adiante. Ainda abraçados, ela vê que a polícia se aproxima. E vem correndo eu sua direção. Precisa fugir. Achou que Zemaré havia roubado em algum lugar aquela “rica” caixinha de chocolates - agora sua. Desgruda-se do seu amor e sai correndo à toda. Guarda os chocolates no porta-seios e, furtivamente, atira a caixinha com seu nome – “Te amo Paulinha” – no canal que, logo, logo, vai desaguar no mar. Zemaré é preso em flagrante, delatado pelos funcionários e pelas microcâmeras do supermercado, que registraram tudo. Tentou explicar a sua falha ao delegado, inclusive prometendo pagar os dois chocolates com a próxima apanha de papel que fizesse à noite no próprio supermercado. Delegados não acreditam em marginais. Na Câmara Criminal de Justiça, por ser réu primário, pegou três anos e meio de prisão. Roubo qualificado. Continua preso. O IMORAL DA HISTÓRIA (caso verídico): Coincidentemente negro, Zemaré ficou na mesma cela onde está preso o ex-morador de rua, Rafael Braga, condenado a onze anos e três meses por portar nove gramas de cocaína. Ambos, contemporâneos de Breno Borges, preso por ter sido flagrado com 129 kg de maconha, uma pistola e munição para fuzis. Presos e surpresos, os dois negrinhos “marginais”, companheiros de cela, assistiram à libertação precoce de Breno Borges, beneficiado por um habeas corpus impetrado através de um desembargador colega de sua mãe, desembargadora Tânia, presidente do Tribunal Regional de Mato Grosso. Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 30/08/2017
Alterado em 03/09/2017 |