UMA CARTA A SHILA KALMI - Compromisso com a vida
Almere - Flevoland - Holanda dom., 22 de mar. às 21h19
Kalmi, caríssima:
Entendo sua preocupação - que é nossa. Aqui, desde 2016/17, o governo achou por bem congelar os investimentos em educação e saúde. Estamos sofrendo as consequências. Temer iniciou e Bolsonaro corroborou. Ambos esqueceram de nossas carências nessas duas áreas (que o bom senso diria: prioritárias). Agora, com quase tudo sucateado, vê-se o corre-corre - dos responsáveis e/ou irresponsáveis pela saúde - para montar um arranjo de estrutura capaz de atender a uma parcela mínima da população. Uns cuidam da saúde dos cidadãos que precisam, enquanto outros oportunizam a reeleição. Com certeza, vamos precisar do apoio de outros países (mais saudáveis, mais humanos e mais organizados). Digo assim porque ainda não se mediu a influência do coronavírus nas áreas mais pobres: periferias das grandes cidades, becos e favelas. Acabo de ver pela TV pobres reclamando falta de água pela terceira semana seguida. Outros se queixando de não ter como comprar sabão. Falta-lhes o trivial para a higienização mínima. É essa a nossa realidade. Depois, como confinar de 5 a 10 pessoas de uma mesma família em barracos de 10 a 15 m² ?... Como falar em confinamento doméstico para os pobres sem-teto, na maioria moradores de rua? Podemos ter uma convulsão social. Lamento dizer que, em isso acontecendo, a polícia aumentará a letalidade dos pobres muito acima dos dizimados pelo coronavírus. No Brasil, aguarda-se um milagre::: que a guerra contra esse inimigo acabe ainda no campo de batalha dos ricos. Se ela se estende para o apertado terreno "dos que nada têm", todos de alguma forma pereceremos. Estávamos esquecendo de que, no Brasil, o fosso que separa os que têm dos que nada têm é o mais profundo de todo este mundo.
Sinceramente, não costumo ser pessimista, mas o que mais poderia dizer um "soldado" confinado no quarto de um apartamento, com a janela aberta e a "boca escancarada esperando a morte chegar" ? ! . . .
Não aprendi a atirar. Nunca aprenderei. Por isso, minha arma é tentar fugir da ira e da mira do meu inimigo a todo custo. Uma das formas recomendadas é permanecer aprisionado. Pode ser possível abatê-lo daqui - acredito - pelas frestas de minha janela. Tentarei. "Diante do impossível, o possível cresce", disse o escritor nordestino Chico Pereira, em "Vingança, não". Agradecido por teu comentário (e desabafo), vai o meu forte e virtual abraço. Cordialmente, Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 22/03/2020
Alterado em 25/03/2020 |