Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

Prefiro a democracia, senhora N



Li suas quase três dezenas de cartas dirigidas aos "Senhores Generais".  Sinceramente, fico um tanto nauseado quando percebo que cidadãos latino-americanos ainda torcem pelo retorno dos seus países ao regime autocrático.

De início, preciso lembrá-la,  senhora N, de que as ditaduras instaladas na América Latina durante a Guerra Fria (pós 2ª Guerra Mundial) foram financiadas pelos Estados Unidos.   É só analisar a história contemporânea desses países: Argentina. Bolívia, Brasil, Chile, Guatemala, Nicarágua, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai...  As ditaduras se seguiam uma após outra, utilizando as mesmas armas, os mesmos métodos de tortura, as mesmas censuras, as mesmas reformas educacionais e as mesmas cartilhas que impunham bitoladas mudanças comportamentais. 

Muitos jovens, em 1968, insatisfeitos com a reforma no ensino, importada e incutida na educação brasileira, principalmente a nível universitário - via acordo MEC/USAID (Lei 5.540/1068) -, que contrariava no todo a democrática Reforma de Base do Ensino, implantada alguns meses antes, em 13/03/1964, após inúmeros debates a nível nacional, foram às ruas para protestar contra mais essa submissão às barbáries ditatoriais do império norte-americano.  Esse movimento culminou com a adoção do Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 13/12/1968, pela ditadura militar.  Esse Ato tirou os direitos políticos de todos os cidadãos, estabeleceu a censura prévia a todas as obras literárias ou quaisquer atividades culturais.  Passou a considerar subversivo qualquer indivíduo  que se manifestasse contrário aos ditames da cartilha de inspiração  norte-americana, imposta para todos os países que estivessem sob regime militar na América Latina.

Muitos jovens, senhora N, se rebelaram mais pelo entusiasmo juvenil, inspirados na causa nobre e na coragem de seus líderes e representantes na UNE (União Nacional dos Estudantes).  Luavam por uma causa, mas foram perseguidos e aprisionados como subversivos. A maioria não sabia sequer o significado desse neologismo de então: "subversivo".  Muitos deles foram atirados ao mar, pulsos amarrados com algemas de gesso. Outros torturados até a morte.  Grande número deles ainda hoje é tido simplesmente com "desaparecido".
"Tinham que um dia morrer" - era o consolo ouvido pelos que procuravam os corpos de seus filhos ou parentes sacrificados.

As ditaduras latino-americanas, impostas pelos EUA, tiveram início entre as décadas de 50 e 70. Todas findaram na década seguinte, ficando mais do que evidente a obediência militar a um ideário ditatorial provindo do hemisfério superior. 


O seu desejo de ver implantada mais uma ditadura militar em nosso país, senhora N, pode não se realizar. É que os imperialistas mudam de tática e se sobressaem como heróis democratas, mesmo nas guerras que eles mesmos provocam. Saiba que, após a década de oitenta, os EUA, pelo menos em aparência, abominam qualquer ditadura no mundo.  Quem diria !... O capital é sua arma. Impõem bloqueios e boicotes econômicos tais que comprometem, a curto prazo, as finanças e situação patrimonial dos países que assim procedem, até o cúmulo do empobrecimento geral de seus habitantes.  Algo tão desumano quanto uma ditadura. Houve apenas uma troca de anéis nos mesmos dedos de apertar gatilhos.

Então, senhora N, torcer pela volta da ditadura e no seu bojo o AI-5, no momento, é uma prova de completo desconhecimento de como a maldade também evolui. Nenhum oficial de nossas Forças Armadas, de bom senso  - é claro ! -,  sequer cogita dessa possibilidade. Se acaso acontecesso em nosso país mais uma ditadura, isto significaria um retorno de alguns séculos de nosso nível de instrução, já raquítico, e de nossas economias de há muito cambaleantes.  Com absoluta certeza, não seríamos poupados pelos que antes garantiam aos ditadores todo poder de vida e morte sobre o seu povo.  


Pra dizer a verdade, senhora N, hoje temos ditaduras disfarçadas pelo voto (casos do Brasil, Venezuela...) cujos tiranos se acercam de militares, impõem o uso de armas pelos seus seguidores e bajulam e se entregam inteiramente aos mandos e desmandos do poderio ditatorial (e colonial) norte-americano. Claro que há também ditadura nos países mais nacionalistas, que, economicamente arrasados, condenam, àquele que lhe impõe restrições, como o Grande Ditador do mundo.

Por fim, senhora N, digo, sem poder me orgulhar, que também vivi a época da mordaça no século passado - vinte e um anos de quarentena -, sim, e aprendi que uma fruta é melhor do que a outra somente quando experimentamos as duas.  Democracia é mais doce e macia.  Só não devemos deixá-la à mercê dos pulgões.  Tema os pulgões ! . . .

Sei, senhora N, que a democracia é uma utopia, mas, se nos despojarmos de alguns preconceitos, vale a  pena lutar e até morrer por ela, mesmo sem alcançá-la.

Acho melhor refletirmos um pouco sem que tenhamos de nos adaptar ao faz de conta do autoproclamado "Paraíso do mundo".  Orgulhemo-nos e lutemos para defender o nosso paupérrimo e explorado país, solidariamente,  como brasileiros.

Vai o meu abraço democrático.
Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 26/04/2020
Alterado em 26/04/2020


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