Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

DESDE 1850, A TERRA É DOS MAIS FORTES

 

 

Acabo de ler "Torto Arado", de Itamar Vieira Júnior.  Uma obra que recomendo, ficção inspirada na vida real. .

De tanto ouvir discursos exaltados de alguns latifundiários que se dizem nossos representantes no Congresso, condenando os "Sem Terra" do M.S.T. - movimento cujas ações há pouco eu desqualificava -, acho por bem, para alargar nossa compreensão, analisar e refletir, junto com os pacientes leitores, alguns tópicos importantes que pincei do livro de Itamar, a saber:

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Páginas 185/187:

"Um dia meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era "viver de morada".  Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre (?). Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era dita "dona" (?).  Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão (?).  Se dali retirávamos o nosso sustento (?).

(...) Meu pai retirou o chapéu, o calor fazia minar de seu corpo um suor grosso que lhe lavava o rosto, escorrendo pela fronte e pelas têmporas.  Escorria pelo lado anterior de seus braços, formando grandes manchas em sua camisa surrada.  O barro cobria sua calça, sua enxada, seus braços, o chapéu largo em suas mãos.  Eu atirava milho e restos de comida para as galinhas.  "Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde (você) vem.  Não tem de onde tirar o sustento", apertou os olhos, olhando para a cova diante de seus pés, "aí você pergunta para quem tem e quem precisa de gente para trabalho:  "Moço, o senhor me dá morada?".  De pronto seu olho se ergueu para meu irmão: "Trabalhe mais e pense menos.  Seu olho não deve crescer para o que não é seu".  Apoiou a enxada em pé no solo, segurando a ponta do seu cabo com um dos braços.  "O documento da terra não vai lhe dar mais milho, nem feijão.  Não vai botar comida na nossa mesa".  Retirou papel e fumo do bolso e começou a fazer um cigarro.  "Está vendo este mundão de terra aí?  O olho cresce.  O homem quer mais.  Mas suas mãos não dão conta de trabalhar ela toda, dão?  Você sozinho consegue trabalhar essa tarefa que a gente trabalha.  Esta terra que cresce mato, que cresce a caatinga, o buriti, o dendê, não é nada sem trabalho.  Não vale nada.  Pode valer até para essa gente que não trabalha.  Que não abre uma cova, que não sabe semear e colher.  Mas para gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho.  Sem ela a terra é nada".

(...) Zezé deixou de falar na frente do nosso pai, em respeito, mas voltou ao assunto vez ou outra, desconsiderando seu pensamento.  Ele não comentava, mas continuou a indagar sobre as mesmas questões, continuava a expor suas ideias.  Dos mais velhos ouviu os mesmos argumentos defendidos por Zeca.  Dos mais novos ouviu que seus questionamentos faziam sentido, que seus pais, avós, morreram sem possuir nada.  Que o único pedaço de terra a que tinham direito, de onde ninguém tiraria, era a pequena cova (do cemitério) da Viração.  Que para aposentar era uma humilhação, pedir documento de imposto ou da terra para os donos da fazenda.  Os homens se "amarravam" para entregar alguma coisa, além de explorar o trabalho sem pagamento dos que iam se aposentar.  Às vezes chegava o dia de ir para a Previdência e  povo não havia conseguido reunir os documentos de que precisava.

Além da dívida de trabalho para com os senhores da fazenda, não havia nada para deixar para os filhos e netos.  O que era transmitido de um para outro era a casa (nunca de alvenaria), quase sempre em estado ruim e que logo teria que ser refeita.  

Os pioneiros não pensavam assim, ou seus pensamentos eram abafados pela urgência de se manter a paz entre os trabalhadores e seus senhores.  Ou porque havia uma gratidão pela acolhida que as gerações seguintes já não tinham, talvez por terem nascido e crescido neste lugar.  Os mais jovens começaram a se considerar mais donos da terra do que qualquer um daqueles que tinham seus nomes transcritos no documento, que tinham sua cópia disputada e negociada pelos gerentes de forma desvantajosa para eles. Meu irmão insistiu no assunto, apesar de evitar falar na frente do nosso pai. 

(...) "Não podemos mais viver assim.  Temos direito à terra.  Somos quilombolas".  Era um desejo de liberdade que crescia e ocupava quase tudo o que fazíamos.  Com o passar dos anos esse desejo começou a colocar em oposição pais e filhos numa mesma casa.  Alguns jovens já não queriam permanecer na fazenda.  Desejavam a vida na cidade.  Os deslocamentos se tornaram mais intensos que no passado, quando nos transportávamos em animais para outros lugares, cidade e povoados vizinhos.  A vida na cidade, entre viajantes e comerciantes, era atraente.  Pesava na decisão justamente o trabalho para os fazendeiros, que foi mantido entre nós e atravessou gerações.  Zezé queria dizer ao nosso pai que não nos interessava apenas a morada.  Que não  havia ingratidão.  "Eles que não nos foram gratos, corre boato que querem vender a fazenda sem se preocupar com a gente" (...).  "Queremos cuidar da terra onde nascemos, da terra que cresceu com o trabalho de nossas famílias" (...).   Mas o desejo de nos libertar terminou por envenenar nossas casas.

(...)  Sobre a terra há de viver sempre o mais forte.

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Obs.: os parênteses inseridos no texto são nossos.

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Consultando nossa insípida história, vamos nos deparar com um tipo de colonização, adotado pelos portugueses no Brasil, ainda hoje vigente de alguma forma:

- devastação do meio ambiente;

- concentração fundiária (latifúndios);

- mão de obra escrava.

O aproveitamento da terra deve(ria) visar tanto os interesses individuais quanto os coletivos. 

Se e quando a terra é improdutiva, ela deixa de exercer sua função social.  Pelas regras da Reforma Agrária, podem ser desapropriadas.

Um latifúndio é considerado produtivo quando cumpre sua função social, produzindo com foco no bem-estar coletivo.

Na maioria das vezes, entretanto, o latifúndio produtivo desenvolve a monocultura (cana-de-açúcar, soja, café, eucalipto...), cujo maior interesse é a exportação desses produtos (não manufaturados), gerando lucros, mesmo sendo esta a causa maior do desabastecimento do mercado e consequente inflação de demanda.  A monocultura gera: desemprego (alta tecnologia manejada por poucos); impactos ambientais (uso excessivo de defensivos agrícolas; desmatamento de grandes extensões de terra; alterações climáticas; perdas da biodiversidade e extinção de espécies que perdem o seu habitat e fontes de alimento)  e empobrecimento do solo (retirada obrigatória da cobertura vegetal, desequilíbrio ecológico, terreno impróprio para outro tipo de vegetação)...                                        

Um latifúndio improdutivo visa apenas a especulação.  Terras aguardando a melhor oportunidade para venda, propiciando lucros financeiros e concentração de renda.  Essas terras podem ser legalmente cedidas para quem deseja plantar culturas variadas, para consumo próprio e para abastecer o mercado.  Na maioria das vezes é explorada pelos "Sem Terra" em forma de cooperativa.  Estes não têm interesse em ser donos da terra, mas posseiros (ter a posse não é ser dono; a posse equivale ao aluguel).

Criticados por invadirem terras, os "Sem Terra" sustentam que não "invadem", mas "ocupam" terras.

Ocupar significa: utilizar, aproveitar, consumir.   Invadir significa: apoderar-se, tomar pela força.

Não há registro de os "Sem Terra" alguma vez terem se apoderado de terras, tornando-se "donos".  Seu objetivo maior é a ocupação para desenvolver policultura.  Trabalhar a terra é a única coisa que sabem fazer.  Antigamente, os proprietários consentiam a exploração de parte de suas terras

mediante cartas de anuência, prática muito rara hoje em dia.

Armas dos "Sem Terra" quando ocupam um terreno alheio:  enxada, foice, pá e facão.   O decreto governamental 9845/2019, sobre armamento, somente permite o uso de armas no campo às pessoas que sejam proprietárias de terra.  Os pequenos agricultores ficaram proibidos de usar até mesmo as velhas espingardas de caçar passarinhos.  Paradoxalmente, o autor do decreto os classificou de "terroristas".  

O resto, só os "Sem Terra" poderão dizer e fazer, com certeza bem melhor do que nós.  Tratemo-los como seres humanos de cujo estafante trabalho todos nós dependemos.     

 

Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 14/06/2023
Alterado em 24/06/2023


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