Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

EU NÃO FUI - disse a vaca; EU NÃO FUI - disse o burro...

 

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Parte inicial deste texto inspirada nos contos infantis de

Ana Maria Machado e Christian Voltz

 

Obs.: 

Ideal para a montagem de uma peça teatral para adultos.

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A velhinha, dona Michelina, todas as madrugadas,

no sítio onde mora, tira leite de sua vaca malhada.

 

- Bom Dia, minha vaquinha!  Como está sua família?

Vim, tirar o leite de todo dia, mas não a vasilha completa.

É só meio pote desta vez, para a coalhada da minha neta.

Sei que você não sabe, mas neta é a filha da minha filha.

 

- Bom Dia, dona Michelina! 

Não entendo nada de neta, mas entendo de nata.

O leite que vou lhe dar, coalha que é uma maravilha.

Eu estava guardando pra minha filha, aquela novilha

que tá ali me esperando pra gente entrar na mata.

 

Leite tirado e um afago na vaquinha antes de ir embora.

 

De repente, a velhinha se vira de uma forma estranha:

é que passeia em seus pés uma pequena aranha.

Com o susto, ficou parada; aí, levou uma marrada forte,

tão forte que caiu estatelada, quebrando o pequeno pote.

 

- Foi você, sua vaca malhada, desgraçada,

que deu no meu traseiro essa baita chifrada?...

Pois saiba que vou lhe dar 25 chibatadas, 05 por mês: pela

marrada, p/susto, p/pote, p/aranha e pelo leite derramado.

 

- Eu não fui, dona Michelina, nem fui eu que comecei! 

Foi o burro que, por sua vez, me deu uma patada.

Eu quis responder-lhe com uma chifrada, mas errei.

Agora,nem adianta chorar sobre a coalhada derramada?!...

 

- Então, foi você, seu burro analfabeto, que tá aí quieto,

mas deu um coice na vaca malhada e ela me deu uma chifrada?

Não se recorda?!!"...  Pois vai levar três chicotadas de uma vez: 

uma pela burrice e outras duas pela demência e pela estupidez!!...

 

- Eu não fui, minha senhora, mas lembrei agora:

Foi a cabra, que também me deu uma chifrada.

Como só sei me defender com coice ou marrada,

acertei, sem querer, o traseiro da vaca malhada.

 

- Pois então essa cabra vai levar logo seis chibatadas.

 

Aí, a cabra não quis conversa, deu no pé, caiu fora.

 

- Ei, volte aqui, sua cabra safada!

 

E a cabra voltou, focinho ensanguentado.

 

- .Foi você, sua cabrita sem vergonha,

que chifrou aquele jumento pamonha,

e o jumento deu um coice na vaca malhada,

e a vaca, sem querer, me deu uma chifrada?

 

- Eu não fui, não, dona Michelina!

Foi o seu cãozinho, esse estuprador,

que me confundiu com uma cadela e me beijou.

Como eu reagi, ele mordeu a minha narina.

 

E continuou:

 

Aí, eu quis chifrar o bucho desse cão cretino,

mas errei; acabei furando a pança do vizinho,

esse bestão sem tino, que já está batendo pino... 

Além de burro, está sem memória, o coitadinho!

 

- Foi você, então, meu cãozinho de estimação,

que iniciou toda essa confusão (?)feriu a cabrita,

que feriu o burro, que feriu a vaca que me pôs no chão,

e eu quebrei o balde, derramei o leite e gritei aflita...

 

- Eu não fui, não, minha dona!

Foi o diacho dessa pulga que não me abandona.

Quando vou mordê-la ela se esconde e fica braba.

Numa dessas eu errei e mordi o focinho da cabra.

 

(Continuou, aperreado*, como um fiel fanatizado):

 

- A gente mora num mesmo lar, então não me bata!

A senhora precisa parar de bater nos pobres vira-latas!...

Nem sabe que essa pulga seu marido trouxe lá da caserna.

Eu é que a aguento, dia e noite com o rabo entre as pernas.

 

- Ah, foi você, dona pulga?... Cadê você, que ninguém vê?

Nojenta, depois que picou meu cão, fez que desapareceu!

E meu cão, agoniado, feriu a venta da cabra, sem perceber.

E a cabra, com medo de ser estuprada, correu e se escondeu.

 

- Na fuga, passou por baixo do burro e lhe deu uma chifrada.

E o burro, perto da vaca, deu-lhe um coice, sem querer.

E a vaca por certo com medo da aranha, me deu uma marrada...

Então, dona pulga, a senhora ainda diz que não foi culpada?!...

 

- Eu não fui, não, dona Michelina!  Ora, que chateação!!... 

(Grita a pulga, que entre os pelos do cãozinho se escondeu; 

por sinal, cãozinho que também era seu, e de estimação)...

Aqui tá feito eleição dos homens: só se ganha no tapetão.

 

- A senhora veio sugar leite pra coalhada da neta. Perdeu.

E eu, pras minhas larvas, ganhei o sangue que Deus me deu.

A senhora tem que saber o que é perder e o que é ganhar.

No campo, ganhador trabalha, e perdedor tem que esperar.

 

Continuou, fazendo comparações:

 

- A senhora não viu o que aconteceu no Brasil?!...

21 anos de ditadura, muitos mortos e desaparecidos.

Não se culpou nenhum ditador ou delator, militar ou civil,

pelo sangue derramado dos jovens nos quartéis detidos!!...

 

- Aí, 34 anos depois, ditadores e suas larvas voltam ao poder,

ocupam cargos relevantes e, após 4 anos, tentam se reeleger.

Como a pulga mais sedenta não consegue novo mandato, tenta

matar a Democracia: terror no aeroporto... tudo se arrebenta...

 

Que bom pra mim seria, hein! Sangue derramado por todo lado,

de civis assassinados e de inocentes esmagados e mutilados!...

(Enquanto diz isso, a pulga se lambe, imaginando-se saciada!)

No outro golpe também foi assim: bico calado, nenhum culpado.

 

- Nenhum general, nenhum capitão, nenhum ser influente...

Ah, sim, sobrou só pros fanáticos, pobres "zés ninguém"!!...

E a senhora, dona Michelina, ainda perseguindo inocentes;

chicoteando a gente e tirando o leite de quem não tem...

 

(Como pulga é inseto que não voa, avesso a repelentes,

coragem de fêmea destemida, ela persiste na indagação):

- Responda agora, minha velhinha, se a senhora foi ou não,

por tudo o que agora aconteceu, responsável ou conivente?

 

- Conivente, eu?!... Jamais me meti em qualquer tramoia!

Meu medo - fala calmamente - digo a vocês em segredo -

é que quebrei o pote em que meu marido guardava as joias,

que ninguém sabe qual general recebeu ou quem vendeu!

 

- NÃO FUI EU..., NÃO FUI EU..., - graças a "Deus"!...

 

- Mas, que "deus" é esse, dona Michelina,

misturado com ouro, diamantes e joias finas?!...

 

- Não sei!  Não sei!  Só sei que o meu "deus" é a minha grei.

e digo, mais uma vez, que "Minhas joias ainda são vocês".

 

Aí, todos os irracionais, vertebrados e invertebrados,

batem patas, se confabulam e, depois de chicoteados,

se calam, conformados.

 

RESOOMER:

"Os fascistas do futuro (que é hoje) não vão ter aquele estereótipo

de Hitler ou Mussolini.  Não vão ter aquele jeito de militar durão. 

Vão ser homens e mulheres falando tudo aquilo que a maioria

das pessoas bem intencionadas quer ouvir, sobre bondade,

família, bons costumes,religião e ética.  É exatamente nessa

hora que vai surgir o novo demônio, e poucos (dos ainda vivos)

vão perceber que a história está se repetindo" (José Saramago).

 

ANISTIA,  NÃO!...     ANISTIA, NÃO!...     ANISTIA, NÃO!...

 

(fernandoafreire.net)

 

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(*) aperreado" - originado de "perro":  cão em espanhol.

Obs.:  grifos nossos, no excerto de Saramago.

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Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 16/07/2024
Alterado em 10/09/2024
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