Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

O silêncio de Deus

15/04/2024

Vivemos num mundo trágico. Poderemos não ter mais retorno ou, forçados pela situação, recuperaremos a razão sensível e sensata?

 

Vivemos globalmente num mundo trágico, cheio de incertezas, de ameaças e de perguntas para as quais não temos respostas que nos satisfaçam. Ninguém nos poderá dizer para onde estamos indo: para o prolongamento do atual modo de habitar a Terra, devastando-a em nome de um maior enriquecimento de poucos, ou mudaremos de rumo?

No primeiro caso, seguramente a Terra não aguentará a voracidade dos consumistas (já agora precisamos de uma Terra e meia para atender o nível atual de consumo dos países ricos) e nos confrontaremos com crises e mais crises, como o corona-vírus e o aquecimento global já irrefreável (lançamos na atmosfera por ano 40 bilhões de toneladas de gazes de efeito estufa). Poderemos não ter mais retorno e iremos ao encontro do pior.

Ou, forçados pela situação, recuperaremos a razão sensível e sensata (porque agora está enlouquecida), definimos um novo rumo mais amigável para com a natureza e a Terra, mais justo e participativo de todos os humanos. Trabalharemos a partir do território desenhado pela natureza, pois aí pode ser sustentável, e criar uma verdadeira participação de todos. Então começará um novo tipo de história com um futuro para o sistema-vida e o sistema-Terra.

Teremos tempo, coragem e sabedoria para esta conversão ecológica? O ser humano é flexível, tem mudado muito e se adaptado aos vários climas. Ademais a história não é linear. De repente surge o inesperado e o impensável (um salto para cima em nossa consciência) que inaugurariam um novo rumo para a história.

Enquanto esperamos, sofremos pelos males que estão ocorrendo na Terra: há 17 lugares de guerra. O Papa Francisco falou muitas vezes que estamos já na terceira guerra mundial aos pedaços. Não é impossível que irrompa um conflito nuclear inteiro e leve a perder toda a humanidade.

Neste contexto nos colocamos no lugar de Jó e clamamos a Deus no meio de tantas mortes de inocentes, de genocídios e de guerras altamente letais.

“Deus, onde estavas naqueles momentos aterradores em que a fúria genocida de Benjamin Netanyahu dizimou 13 mil crianças inocentes e mais de 80 mil pessoas e mães na Faixa de Gaza? Por que não intervieste, se podias fazê-lo? Mais de 500 mil casas, hospitais escolas, universidades, mesquitas e igrejas foram arrasadas. Por que não detiveste aquele abraço assassino? Teu Filho bem-amado, Jesus, saciou cerca de 5 mil pessoas famintas. Por que permites que centenas e centenas morram de sede e de fome?

Onde está a tua piedade? Estas vítimas não são também teus filhos e filhas, especialmente queridos, porque representam teu Filho crucificado!?...

Recordo com dor as palavras do Papa Bento XVI quando visitou o campo de extermínio de judeus em Auschwitz-Birkenau: “Quantas perguntas surgem neste lugar!... Onde estava Deus naqueles dias? Por que Ele silenciou? Como pôde tolerar esse excesso de destruição, este triunfo do mal?”.

Deus é grande demais para que possamos conhecê-lo” ( 36, 26). Ele pode ser e fazer aquilo que não entendemos, pois somos limitados. Não obstante, teimosamente Jó professa sua fé, dizendo a Deus: “Mesmo que me mates, ainda assim creio em ti” ( 15,13).

Inesquecível é o testemunho do judeu antes de ser exterminado no Gueto de Varsóvia em 1943. Deixou escrito num papelzinho posto dentro de uma garrafa: “Creio no Deus de Israel, mesmo que Ele tenha feito tudo para que não creia nEle. Escondeu seu rosto…Se, um dia, alguém encontrar esse papelzinho e o ler, vai entender, talvez, o sentimento de um judeu que morreu abandonado por Deus, esse Deus em quem continuo a crer firmemente”.

Não pretendemos ser juízes de Deus. Mas podemos (questionar) como o filho do homem no Jardim das Oliveiras e no alto da cruz, Jesus, quase desesperado, clamou: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste (Marcos 15, 34)?

Nossos lamentos não são blasfêmias, mas um grito doloroso e insistente a Deus: “Desperta! Não tolere mais o sofrimento, o desespero e o genocídio de inocentes. Acorda, vem libertar aqueles que criastes no amor. Acorda e vinde, Senhor, para salvá-los.

No meio desta melancolia, nossa esperança prevalece, porque pela ressurreição de um irmão nosso, Jesus de Nazaré, se antecipou nosso fim bom. É isso que nos confere algum sentido, o de não desesperar face à dramática situação da humanidade e da Terra.

____________________________________________________

 

*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Habitar a Terra:

qual o caminho para a fraternidade universal (Vozes) [https://amzn.to/3RNzNpQ]

____________________________________________________

 

Leonardo Boff
Enviado por Fernando A Freire em 24/07/2024
Alterado em 01/08/2024


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras