Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

MACHADO DE ASSIS EM GAZA

 

Transcrevo, condensados, dois capítulos - XI e LXVIII - da obra "Memórias póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis.  Ambos se complementam e nos fazem refletir sobre a razão, quase secular, de os judeus israelitas - que tanta amargura sofreram durante o holocausto nazista - tratarem, a pão e água e sob preconceituosas chicotadas, os  palestinos que ainda ousam sobreviver no entorno de Israel:

 

Capítulo XI - O MENINO É PAI DO HOMEM

"Cresci naturalmente como crescem as magnólias e os gatos.  Talvez os gatos sejam menos matreiros e, com certeza, as magnólias sejam menos inquietas do que eu na minha infância.  Um poeta dizia que o menino é pai do homem,  Se isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino.

Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de "menino diabo" e verdadeiramente não era outra coisa:  arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso.  Um dia quebrei a cabeça de uma escrava, por me negar uma colher do doce de coco que estava fazendo.  Não contente, deitei um punhado de cinzas ao tacho e ainda fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce,"por pirraça";  eu tinha apenas seis anos.  

Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio; eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia - algumas vezes gemendo - sem dizer palavra, ou, quando muito, um "ai nhonhô", ao que eu retorquia:  "Cala a boca, besta!"... ... ...  Minha mãe doutrinava-me a seu modo, fazia-me decorar alguns preceitos e orações, mas eu sentia que, mais do que as orações, me governavam os nervos e o sangue...  De manhã, antes do mingau, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me perdoasse, assim como eu perdoava aos meus devedores, mas, entre a manhã e a noite, fazia grande maldade, e meu pai, passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir: Ah, brejeiro!  Ah, brejeiro!" ...   ...   ...     

 

Capítulo LXVIII - O VERGALHO (*)

"Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo (**) fora, logo depois de ver e ajustar a casa.  Interrompeu-mas um ajuntamento.  Era um preto que vergalhava (chicoteava) outro na praça.  O outro não se atrevia a fugir;  gemia somente estas únicas palavras: - "Não, perdão, meu senhor;  meu senhor, perdão!"  Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.

- Toma diabo - dizia ele - toma mais perdão, bêbado!

- Meu senhor!  Gemia o outro.

- Cala a boca, besta!  Replicava o vergalho.

Parei, olhei... justos céus!  Quem havia de ser o do vergalho?

Nada menos que o moleque Prudêncio, o que meu pai libertara alguns anos antes.

Cheguei-me.  Ele deteve-se logo e pediu-me a bênção.  Perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.

- É, sim nhonhô...   ...   ...

Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino e até profundo. 

Era um modo que Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas outrora recebidas - transmitindo-as a outro (...).

Prudêncio agora era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava:  comprou um escravo, e ia lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera.  Vejam as sutilezas do maroto!"

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No fim do extermínio palestino, ouvir-se-á dalgum vergalho israelita, descendente de quem foi humilhado e torturado no holocausto, esta mentira inventada por Hitler:  - "Prestei um serviço a Deus". 

Cabe ao leitor depreender dos textos acima, se há verossimilhança entre os atos de represália praticados por Prudêncio (no passado) e, por exemplo, Netanyahu (no presente). 

Com a intenção de promover um harmonioso debate sobre o tema, analisarei detidamente os comentários mais construtivos, transcrevendo-os como interação no rodapé deste trabalho.

 

                                                                           (fernandoafreire.net)

 

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(*) Vergalho - chicote feito com o órgão genital do boi ou do cavalo,

encomendado pelos "senhores" para a tortura de seus escravos.

(**) Valongo - local onde os escravos eram negociados.

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Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 01/12/2024
Alterado em 02/12/2024


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