![]() MARINA COLASANTI VIAJOU NUMA CASQUINHA DE NOZ
Poetisa, cronista, escritora com mais de 70 obras, atemporais e inesquecíveis, que destinou a adultos e principalmente ao público infantojuvenil. Não se ateve apenas à literatura. Dedicou-se também à arte plástica, jornalismo e ao ofício de tradutora. Décima mulher a conquistar o Prêmio Machado de Assis (2023). Nove vezes ganhadora do Prêmio Jabuti. Nascida em Asmara, capital da Eritreia, passou praticamente toda a infância em Trípoli, Itália. Aos 11 anos de idade, escapando dos resquícios da 2ª Guerra Mundial, emigrou para o Brasil, fixando residência com sua família no Rio de Janeiro. Faleceu anteontem, 28/janeiro/2025. Suas obras, artísticas e literárias, deixaram marcas indeléveis que a imortalizam. Numa de suas inteligíveis crônicas, vi que visitou minha terra, Cabedelo, na região metropolitana de João Pessoa (PB), em dois momentos, distantes e distintos. Da primeira vez, pelo jeito provinciano do lugarejo que descreve, deu pra lembrar o poeta Manuel Bandeira, que ao visitá-lo 30 anos antes (1926), destacou Cabedelo no cenário literário nacional ao compor, ao sabor de água de coco, uma de sua primeiras poesias: "Em Cabedelo, numa casquinha de noz". Como me parece ser a irmã a quem ele dedicara sua obra-prima, acho oportuno publicar, a seguir, a irrepreensível crônica publicada por essa enorme Marina Colasanti, em 04/junho/2006, no Caderno B do Jornal do Brasil, intitulada: "O justo nome de uma Praia Formosa". A saber: __________________________________________________ "O tio-avô de um amigo meu batizou, um dia, uma praia. Formosa, chamou-a. E o nome era tão apropriado, que assim se chama até hoje. Se a mim coubesse batizá-la agora, apelaria para um nome duplo. Formosa Serena, eu a chamaria. E o acréscimo lhe iria bem, como laço em ponta de trança. A água é mansa e morna em Formosa. Não precisei entrar para saber. Bastou-me olhar a entrega de mãe e filho, banhando-se os dois, ela talvez ensinando-lhe a nadar, unidos novamente naquele mar placentário, sem pressa de nascer. E há peixes em Formosa, embora a distante cerca de arrecifes lhe dê uma placidez de fonte. Peixes pequenos ou camarões, que dois pescadores metidos na água até a cintura iam recolhendo numa rede, sem pressa e sem esforço, e que seriam comidos mais tarde em alguma ou algum botequim, moquecados com leite de coco, sobrenadando em pirão. No entanto, Formosa é tão próxima à cidade, que vai-se de carro quase sem perceber que se foi, com a sensação de estar apenas em um bairro a mais, só um pouco afastado. É uma das praias que compõem o sorriso marítimo de João Pessoa. Ali, pouco depois de Tambaú, um tanto à direita, um tanto à esquerda, passando uns condomínios, rumo a Cabedelo. A primeira vez que fui a Cabedelo tinha cerca de 19 anos, viajava de navio como meu pai rumo à Europa fugindo de um noivado, e o navio parou no porto para entregar uma carga de madeira. Ficamos atracados 15 dias. Havia um porto, uma pracinha, 12 casas e um sol de cegar. O rádio ficava ligado o dia inteiro no alto falante da pracinha vazia. O resto eram coqueirais e praia a perder de vista, casinhas de taipa debaixo dos coqueiros, cheiro de sargaço trazendo o mar para dentro dos pulmões. E mais nada. Nem era preciso mais. Todos os dias comprávamos cocos, íamos à praia, e lá ficávamos, entre sal e sol, até o anoitecer. Mas um dia resolvemos conhecer a capital. Tomamos um ônibus trôpego que parecia saído de um filme americano sobre a América Latina, andamos um bom tempo aos solavancos em estradas enlameadas, e afinal chegamos. Que modesta capital era aquela, com seu centro antigo de pequenos sobrados. Que ar de abandono, de tempo em trânsito. Nada era mais o que havia sido, nada era ainda parecido com o que ia ser. A única coisa constante era o calor, com seu cheiro úmido. E em meio a nosso comovedor esforço turístico, vimos num terreno baldio uma tenda. Nem bem uma tenda, uma espécie ou imitação precária de tenda de circo, pequena. Acima da entrada encoberta por um pano, vistoso cartaz escrito a mão aliciava: "Tudo o que de melhor a Natureza oferece!". Meu pai quis entrar imediatamente. Se é o que de melhor oferece, me disse rindo, há de ser mulher nua. Não era. Lá dentro, na penumbra abafada, um cercadinho rodeado por alguns poucos curiosos era palco de exibição para uma capivara. Na volta, curamos a hilária decepção parando em Tambaú, naquele tempo apenas uma colônia de pescadores onde, à sombra das amendoeiras que ainda existem, algum deus Olimpo, sob disfarce, preparava uma sopa de cabeça de garoupa inesquecível. Foi ontem isso, na minha vida. Depois voltei a João Pessoa várias vezes. E cada vez, na cidade que se expande e cresce, tenho a impressão de encontrar uma nova cidade. Semana passada estive lá para a Primeira Bienal do Livro, num centro de convenções moderníssimo. E só quando abri a janela do meu quarto de hotel percebi que estava em Tambaú. O deus há muito regressou ao Olimpo, nem eu me atrevo a pedir sopa de cabeça de garoupa em restaurante. Agora o mar dá frutos mais elegantes, e elegantes são os prédios que se multiplicam de um dia a outro, como cogumelos. Mas um tanto à direita, um tanto à esquerda e seguindo em frente no rumo de Cabedelo, chega-se à Praia Formosa, onde o tempo ainda tem cheiro de sargaços, os peixes saltam e um quase deus derrama farinha no caldo de camarões para fazê-la pirão". __________________________________________________
Ah, querida Marina Colasanti, quisera ter-te encontrado em tua primeira vinda a Cabedelo, naquele mesmo instante de 1956 em que eu, adolescente, desenhava na areia da praia as casinhas de taipa, sem alinhamento entre os coqueiros, para guardá-las na memória e mais tarde exibi-las no romance "Em Cabedelo, numa casquinha de noz". A saudade daquela comunidade mantida por ingênuos ferroviários, estivadores e pescadores está ainda registrada na minha visão de um ontem em trânsito, que todo dia cresce e se distancia. Maninho e dona Joaquina, protagonistas desse romance, agradecidos por tua visita, te recomendam a Deus. Adeus, Marina, descansa em Paz! __________________________________________________
Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 30/01/2025
Alterado em 03/02/2025 Comentários
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